Edmundo Siqueira
17/07/2025 16:27 - Atualizado em 17/07/2025 18:45
Quando o USS Nashville, cruzador da marinha americana, despontou no horizonte visível dos militares brasileiros, a emoção não foi disfarçada — esperavam na base naval do Rio de Janeiro oficiais, praças e autoridades do governo. A máquina de guerra atracou e dela desceu o Chefe do Estado-Maior dos EUA, General George Marshall.
A vinda de Marshall marcou o início de um profundo processo de americanização do Exército Brasileiro. A partir da década de 1930, diversos acordos de cooperação militar e de defesa mútua operacionalizaram uma reconversão doutrinária: do modelo francês para o norte-americano. Havia interesses dos dois lados: o Brasil podia aprender e se aliar a uma potência militar em ascensão; os EUA, por sua vez, consolidavam sua influência no quintal sul.
A formação dos militares — os mesmos que hoje comandam as Forças Armadas brasileiras — foi moldada nessa base americanizada. Com a Segunda Guerra, a doutrina dos EUA foi rapidamente consolidada, com missões de observação, cursos e a experiência da Força Expedicionária Brasileira (FEB) lutando ao lado dos norte-americanos.
O ex-presidente Jair Bolsonaro e o bolsonarismo, que ascendeu com ele ao poder, possuem três pilares evidentes: o militarismo, a religião e a reafirmação de uma classe média ressentida, com forte traço masculino. No campo militar, os Estados Unidos são referência maior — e daí nasce uma admiração quase patológica de Bolsonaro por Donald Trump, um presidente que personifica todas essas bases.
A paixão não correspondida
Em entrevista recente ao Poder360 (veja aqui), Bolsonaro não escondeu o afeto:
— Eu sou apaixonado por ele (Trump), pelo povo americano, pela política americana, pelos Estados Unidos. Eu nunca neguei isso desde meu tempo de garoto. O Trump sempre soube disso. Ele me tratava como um irmão.
Donald Trump e Bolsonaro, ideologia e admiração
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Reprodução/O Globo
A confissão merecia trilha sonora: “estranho seria se eu não me apaixonasse por você”, como canta Nando Reis em All Star. A canção é sobre um amor idealizado, distante — desses que machucam mais pela ausência do que pela presença. Serve como luva. Bolsonaro construiu com Trump uma devoção unilateral, mesmo nos momentos em que foi ignorado. Era como o eu lírico da canção, que sente que o outro “vive bem sem mim”.
Curiosamente, a música, embora brasileira, carrega no título o nome de um símbolo da cultura pop americana. O All Star, como tênis, virou ícone global. E como todo símbolo importado, foi abrasileirado, reinterpretado — e banalizado. O amor político de Bolsonaro por Trump também passa por isso: uma mistura de All Star com coturno genérico, moldado ao gosto de um Brasil conservador e, sobretudo, carente de autoestima internacional.
Como na música, o amado (Trump) não retribui com a mesma intensidade. A relação, assimétrica, virou quase um constrangimento público. O problema é que esse amor — ridicularizado por uns e venerado por outros — moldou parte da política externa e interna do país. E ainda contamina, como vírus, o imaginário de muita gente que acredita que, vestindo o tênis certo, ganha um passaporte simbólico para o "primeiro mundo".
O tarifaço e a liberdade condicional de Bolsonaro
Trump anunciou um tarifaço de 50% sobre produtos brasileiros — aço, alumínio e uma alíquota geral. O pacote deve entrar em vigor em 1º de agosto. Oficialmente, a justificativa é “proteger a indústria americana”. Mas a motivação política é clara: retaliação à regulação das redes digitais e à “perseguição” que Bolsonaro estaria sofrendo no Brasil.
Politicamente, foi um tiro no pé. A direita rachou. Tarcísio de Freitas tentou mediar com os EUA e foi atacado por Eduardo Bolsonaro, que atua como um tipo de lobista informal do pai em Washington. A coluna Ponto Final, da Folha da Manhã (veja aqui), cravou: “Até aqui, todas as mudanças advindas da ameaça do tarifaço de Trump são ruins à direita brasileira”.
O gesto revela o que já se suspeitava: para parte do bolsonarismo, patriotismo é apenas retórica. Quando se trata de agradar ao ídolo estrangeiro, não há pátria, soberania ou dignidade que resistam.
Anticomunismo, doutrina e golpes
Embora o exército americano mantenha distanciamento da política interna, há fartas evidências do seu papel em influenciar golpes em países latino-americanos. O Brasil não é exceção. Em 1964, documentos hoje abertos mostram o apoio logístico e político dos EUA ao golpe militar — e antes disso, o famoso Plano Cohen, usado como pretexto em 1937 para implantar o Estado Novo, também surfava na onda do anticomunismo internacional.
USS Nashville
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Reprodução
A doutrina militar americana reforçou uma visão deformada da democracia: para muitos oficiais brasileiros, a democracia só existe quando os militares vigiam. A Guerra Fria intensificou esse delírio. A ideia de que os quartéis devem ser o “poder moderador” nunca saiu de moda entre os saudosistas de farda. Como se a pólvora, sozinha, soubesse o que fazer com os votos.
A aproximação militar entre Brasil e Estados Unidos não moldou apenas táticas e armamentos. Moldou também doutrinas, visões de mundo, e a ideia — herdada e distorcida — de que Forças Armadas são fiadoras da democracia, mesmo quando se afastam dela. O contato com os americanos reforçou, em muitos oficiais brasileiros, uma crença intervencionista: de que era preciso barrar inimigos internos, reais ou inventados, com tanques nas ruas e censura nos jornais.
Com a Guerra Fria, o anticomunismo virou dogma. A identificação da caserna com o Ocidente cristão, o militarismo e o conservadorismo moral ganhou roupagem doutrinária. O resultado foi a elevação do fardado à condição de “poder moderador” — um papel que a Constituição jamais conferiu, mas que segue vivo no imaginário de quem ainda não desfez as malas de 1964.
Bolsonaro é a materialização da síndrome da caserna tropicalizada. Seu amor por Trump não é só pessoal — é histórico, doutrinário, quase genético. O All Star da juventude virou farda; e o sonho americano, delírio. Só que o tempo passou. E, enquanto Trump finge que não conhece mais o “irmão brasileiro”, Bolsonaro segue esperando que um navio de guerra volte à Baía de Guanabara — trazendo, quem sabe, uma saudade de 1930. Ou uma caixa de tênis número 42.
*Com informações do artigo "Ensino de pós-graduação no Brasil: as Ciências Militares", de Rafael Soares P. da Cunha e Eduardo Xavier F. Glaser Migon, e "Oficiais do Exército Brasileiro nos EUA: experiência, memória e incorporação seletiva de ideias nas décadas de 1930 e 40", de Eduardo Munhoz Svartma, para ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Fortaleza, 2009.