Arthur Soffiati - Rio Negro
* Arthur Soffiati 02/08/2025 12:11 - Atualizado em 02/08/2025 12:10

Arthur Soffiati*

Não é só encanto. É fascínio o que o rio Negro exerce sobre pessoas interessadas. Exercerá sobre os animais? Formador do rio Amazonas com o Solimões, ele é o sétimo maior rio do mundo em volume hídrico. Sua água escura o distingue dos rios barrentos da Amazônia. O encontro das águas do Negro com o Solimões é simbólico. Elas continuam a correr separadas por longo trajeto pela diferença de temperatura, densidade e velocidade de ambos os rios. Sem ignorar os problemas de desmatamento da grande floresta e das enchentes e secas que sofrem os rios, cabe observar que o Negro corre na parte mais íntegra da Amazônia.
Também chama a atenção a diversidade cultural da bacia do rio Negro antes da chegada dos europeus. Na sua bacia, habitam os Arapaso, Baré, Barasana, Karapanã, Kubeo, Makuna, Miriti-tapuya, Pirá-tapuya, Siriano, Tariana, Tukano, Kotiria. As etnias Maku compreendem Dow, Hupda, Nadöb, Yuhupde, Kakwa, Nukak. As etnias do rio Içana, também na bacia do Negro, integram os Baniwa e os Coripaco, falantes do aruak. O quadro étnico e linguístico é complexo. Esses povos habitam área de fronteiras entre Brasil, Colômbia e Venezuela, fronteiras que foram definidas por europeus, não por eles.
Francisco Orellana é considerado o primeiro europeu a alcançar o rio Negro, em 1541. Ele foi utilizado para ligar as colônias espanholas do Pacífico e do Atlântico. Ingleses e holandeses também andaram por lá. Os povos nativos ofereceram resistência aos europeus. Expedições científicas igualmente subiram o Negro. O primeiro a obter informações volumosas foi o brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira,
que liderou uma expedição à Amazônia e a Mato Grosso entre 1783 e 1792. O resultado foi monumental: descrições e desenhos de plantas, animais, indígenas. No século XIX, várias expedições foram empreendidas por naturalistas e antropólogos estrangeiros. Os nomes que se destacam são os de Humboldt (que não entrou no Brasil), Martius, Wallace, Tchudi, Koch-Grünberg e vários outros.
Minha viagem à Amazônia, em maio de 2025, permitiu-me descobrir quem descobriu o rio Negro, tanto os povos que primeiro lá chegaram e lá se instalaram, desenvolvendo a sua sabedoria, quanto os europeus que visitaram e estudaram a região hoje entre Brasil, Venezuela e Colômbia. Já li “Peixes do rio Negro”, de Alfred Russel Wallace (São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado, 2002), um dos fundadores do evolucionismo junto com Darwin; “Petróglifos sul-americanos”, de Theodor Koch-Grünberg, (Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi; São Paulo: Instituto Socioambiental, 2010); a experiência que o médico Drauzio Varella adquiriu em muitas viagens ao rio Negro e que reuniu seus escritos em “O sentido das águas” (São Paulo: Companhia das Letras, 2025). Li também os contos escritos e reunidos por Vera do
Val em “Histórias do rio Negro” (São Paulo: Martins Fontes, 2007).
Mas não apenas. A criação da Capitania de São José do Rio Negro, em 1775, intensificou a presença de brasileiros e portugueses na bacia do rio Negro. Missionários católicos já estavam realizando seu trabalho de catequese nos rios que formam a bacia. Os manau ofereceram resistência às conquistas dos brancos. O líder indígena Ajuricaba, feito prisioneiro, atirou-se nas águas do Negro, preferindo a morte.
Robin M. Wright informa que “A década de 1740 foi um período intenso de operações escravistas por parte de portugueses e espanhóis no Noroeste Amazônico – do Médio Rio Negro ao Alto Orinoco.” (“História indígena e do indigenismo no alto rio Negro”. Campinas: Mercado das Letras/São Paulo: Instituto Socioambiental). Houve conflitos. Muitos nativos morreram não apenas com as doenças levadas pelos brancos, mas também nas guerras. Houve captura de indígenas para escravização.

O pensamento europeu entrou no noroeste amazônico de maneira triunfante, acreditando que conseguiria escravos e convertidos. Mas as culturas dos povos conquistados pela força não podem ser apagadas por completo. Houve processos de aculturação. Lideranças indígenas mesclaram suas culturas tradicionais com o cristianismo e criaram concepções mistas. Apareceram “profetas”, uma característica
marcante dos séculos XIX e XX. Até hoje, o baniwa Kamiko é considerado o maior profeta do noroeste amazônico, sendo chamado de Cristo pelos seus seguidores. Seu filho Uétsu continuou a mística do pai.
O mais curioso aconteceu com a missionária protestante Sophie Muller. Norte-americana, ela decidiu levar o evangelho aos indígenas do Noroeste Amazônico e se tornou uma líder messiânica entre eles. Observemos que o contexto favoreceu concepções milenaristas. Os povos nativos estavam sendo muito explorados por militares e comerciantes. Essas lideranças crescem nesse contexto. Elas não pregavam o igualitarismo dos “Atos dos Apóstolos”, mas instigavam seus seguidores a se afastarem dos brancos e terem sua própria vida. O caminho é voltar a sua vida comunitária, mas como cristãos. O rio Negro tem sido objeto de muitos estudos.
*Professor, escritor, historiador e ambientalista

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