Edmundo Siqueira
24/12/2022 11:43 - Atualizado em 24/12/2022 11:45
Nesse Natal os Borges haviam prometido que passariam em paz. Os últimos três, não fizeram promessas. Sabiam que iriam brigar, discutir com veemência e dar socos na mesa. Mas esse seria um Natal diferente; esse era o acordo.
O patriarca dos Borges tinha consciência que havia criado filhos bem diferentes. Prole que pela simetria de gênero parecia combinada com Deus: três homens e três mulheres, nascidos intercalados. A matriarca tentava se convencer que todos eram iguais, mas sabia das discrepâncias.
Mas não eram as diferenças que os faziam brigar. Eram as similitudes. Iguais na passionalidade com que lidavam com a vida, na firmeza de posições e na principalmente na teimosia. As diferenças estavam nas predileções políticas, nas condições financeiras e nas aparências. Mas, nas essências, se igualam a ponto de sair faíscas na contato, ou de criar um campo magnético repelente por serem da mesma positividade.
Para que esse Natal fosse de harmonia, decidiram não comprar presentes. Não haveria amigo oculto, portanto sem especulações e discursos dúbios para que se descubra o presenteado. A ceia haveria de ter os pratos que todos gostavam, na mesma quantidade. Não teria rigidez de horário, e as crianças mais novas não seriam incomodadas para tirar foto.
Qualquer tipo de situação que potencialmente originasse algum conflito teria que ser evitada. Na véspera, os termos foram revisados, as premissas foram reforçadas e todos da família Borges sabiam que esse seria um Natal diferente, finalmente, sem brigas.
Como era feito tradicionalmente, os Borges se reuniram na casa que a mãe havia comprado com o dinheiro de uma grande causa que havia ganhado, e que o pai a decorava com luzes natalinas na entrada, todos os anos.
Todos cientes de suas obrigações, sentaram-se à mesa. Crianças comportadas, assuntos amenos, pedidos cordiais de saleiros, e do vidro de azeite. Já havia dado meia-noite, já era 25 de dezembro, e nenhuma discussão havia sequer começado. Os Borges conseguiram. Cumpriram o que haviam combinado.
Mas todos seguiram para suas casas, com exceção da matriarca e do patriarca, com a sensação de que alguma coisa estava faltando. Não parecia Natal. Talvez as brigas fizessem parte da família Borges. Talvez fosse da natureza deles colocar com veemência suas visões de mundo.
Antes iam dormir mais leves depois da catarse em família; nesse Natal parecia que não havia sido feita a ceia, parecia que era mais uma noite comum.
No almoço de 25 se reuniram novamente. Estavam em silêncio até que a matriarca o rompeu:
— Filhos, netos e marido. Sei que fizemos acordos e fiquei feliz que tenhamos os cumprido ontem. Foi uma ceia linda, tranquila e em paz.
Todos balançaram a cabeça positivamente e deram sorrisos protocolares. A matriarca seguiu:
— Mas foi só eu que fiquei com a sensação de que não fomos nós ali? Foi só eu que pensei que o acordo que fizemos não funcionou apesar de ter sido cumprido?
Depois que a matriarca falou o que todos estavam pensando, a coisa ficou mais leve. Assuntos proibidos voltaram à baila. Os Borges voltaram a ser eles mesmos. Algumas discussões mais fortes começavam a nascer.
Mas foram no terreno do respeito à opinião diversa. Os Borges pareciam ter entendido depois do curto período sabático, que a saída não é proibir assuntos, e sim trazê-los à mesa sabendo que outros não vão concordar.
Claro que aquele membro mais exaltado da pequena comunidade que os Borges criaram continuou a falar em tom mais alto. Claro que havia quem continuasse a insistir na opinião própria, mesmo que fosse convencido com argumentos válidos do contrário. Só por teimosia. Na verdade, pouco havia mudado.
Mas algo significativo havia sido acordado entre os Borges, sem precisar de um contrato formal e de qualquer outra formalidade de rigidez. Depois desse Natal, regras de convivência foram estabelecidas à luz do pisca-pisca brega da árvore já desgastada de alguns anos de uso sazonal. Todos pactuaram, pelo instrumento contratual do respeito mútuo, que poderiam discutir sim, mas sem que precisasse, para isso, ofender.
As regras não escritas dos Borges deveriam ser seguidas por todos da família, e ensinado às crianças. A esperança de dias mais respeitosos e ceias sem socos na mesa, nascia daquela manjedoura contratual, daquele estábulo ficcional, mas altamente simbólico.
Política e Natal poderiam conviver sim. Assuntos não deveriam ser proibidos, ou receber censura prévia. Mas se ultrapassassem o limite da liberdade dada pelo próprio acordo feito antes, esse deveria ser impedido de estar sobre a mesa, mas sempre respeitando a Carta de Princípios que os Borges haviam estabelecido mutuamente.
Naquele Natal os Borges haviam feito uma promessa. E cumpriram, mesmo tendo aparentemente a descumprido. Os Borges entenderam: família, seja ela qual composição tiver, é feita essencialmente disso: promessa de dias melhores.