Arthur Soffiati - Rua Ibitiúva, 314
* Arthur Soffiati 06/12/2025 07:12 - Atualizado em 06/12/2025 07:12
Depois de morarmos pouco mais de um ano na rua Ceriba, mudamo-nos para a rua Ibitiúva. O bairro era o mesmo: Padre Miguel. A rua era asfaltada, enquanto que a Ceriba era de terra batida. No mais, não havia muita diferença entre as casas. Em conversa recente com um murador daquele bairro, fiquei sabendo que a vida por lá se tornou muito perigosa em termos de segurança. “Insuportável!”, exclamou ele.
Aos olhos de um observador à distância no espaço e no tempo, havia muitas figuras interessantes na rua. Uma delas era um menino de quem nunca soube o nome. Todos o chamavam pelo seu apelido. Era Alisabem, pois ele usava brilhantina ou qualquer outro produto que lhe assegurava um penteado imune a ventos e a qualquer outro contratempo. Era mais uma escultura que um penteado.
Alisabem brincava conosco na rua, mas não jogava pelada nem praticava qualquer outra brincadeira atlética. Ele poderia ganhar o epíteto de maricas por não soltar pipa e jogar bola-de-gude. Mas não ganhava porque pronunciava palavrão. Portanto, era macho.
Ele era filho temporão. Devia ter, talvez, uns dez anos. Suas duas irmãs já eram adultas. Uma se chamava Creuza e a outra Cremilda. Uma delas noivou e casou. Seu casamento foi típico de subúrbio do Rio de Janeiro nos anos de 1960.
Uma festa em casa com todos os vizinhos convidados. Todos? Não propriamente. Havia aqueles que estavam de mal com a família. Um bolo com um casalzinho no topo. Guaraná, Mineirinho e refresco de groselha. A turma chamava de grosel e jamais soube que o pó dissolvido em água provinha de uma fruta com o menos no nome, caso não fosse falsificado. Sanduiche feito com pão francês e marmelada. Era muito comum oferecer esse cardápio no subúrbio.
Lembro que, em certo momento, um helicóptero sobrevoou o bairro. Era comum chamá-lo de helecoper. As pessoas ficavam assustadas com aquele aparelho que voa feito libélula. Eu estava nesta festa. Escondido do meu pai, eu estudava música. Minha avó pagava as aulas de teoria musical e piano, que eu só tocava na casa da professora, em Bangu. Estudar música era coisa de gay para meu pai.
Claro que não aprendi nada ou logo me esqueci por falta de prática. Restou-me apenas um pouco de teoria musical, que também esqueci. Mas, na época, eu sabia algo mais. A professora admirava minha capacidade de aprender teoria, mas lastimava meu dedilhado no piano. O pouco de teoria musical me permitiu grafar as notas básicas do terceiro movimento do segundo concerto para piano de Brahms. Sim, leitores, eu devia contar então com 16 anos e já gostava desse hermético compositor.
Sabendo que encontraria um maestro de banda na festa, levei-lhe a partitura com meus registros. O maestro entoou as notas e me perguntou se era aquilo mesmo. Era. Fiquei feliz pelo registro, mas o compasso não correspondia à melodia original. Tudo bem. Conversamos sobre música. Enquanto eu gostava de Bach, Brahms e Villa-Lobos, ele gostava de Hekel Tavares. Os gostos não combinavam, mas ele conhecia teoria musical e eu não.
De repente, começou uma briga na família de Alisabem. Não soube muito bem por que motivo. Mas era algum problema entre seus pais e o genro. Foi briga feia. No meio da confusão, o maestro e eu continuávamos a conversar sobre música, pois era comum briga em família no subúrbio. Éramos indiferentes à confusão. Alisabem sumiu no meio da festa.
Logo tudo se acalmou, mas os convidados foram dispensados. O noivo, já marido, sumiu. Do lado de fora, a conversa sobre música continuou. Alisabem passou por nós e não disse nada. Não eram necessárias desculpas. Estávamos acostumados a essas brigas.
Houve outros casamentos com confusões, mas eu não estava neles. Meu vizinho de parede eram Haroldo e sua família, também muito brigões. Da mesma forma, nos aniversários da família de Haroldo, serviam refresco de grosel e pão recheado com marmelada. Bem defronte à nossa casa, morava Joel, cujo pai saía de manhã vestido de pijama para ir à feira. Blusa e calça comprida de pijama com chinelo e uma bolsa de feira.
Paulo Cerquize e suas belas irmãs moravam defronte minha casa. Elas me tratavam com carinho. Eu adorava. Fozó e Renato mais adiante. No mesmo lado da nossa casa, havia um homem solteirão que morava sozinho. Diziam-me que era homossexual e pagava pelas companhias. Personagens de um subúrbio que não mais existe.
Éramos adolescentes. Soltávamos pipa, jogávamos bola-de-gude, pião, pique e a indefectível pelada nos terrenos baldios. Havia o caso ímpar de Aliberto, que nos abordava quando a bola estava fora do campo e nos perguntava se estávamos sentindo um cheiro ruim. Ele achava que estava apodrecendo em vida.
*Professor, escritor, historiador, ambientalista e membro da Academia Campista de Letras

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