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Havia algo de simbólico — apesar de triste — no fim do campista José do Patrocínio em Inhaúma, bairro da Zona Norte do Rio, próximo a Del Castilho e Pilares. Inhaúma vem do tupi ña'un, que significa “ave preta”. Patrocínio era exatamente isso: uma ave preta que insistiu em voar nos tempos perversos da escravidão. E conseguiu alçar seu voo mais alto pelas mãos de sua amiga, Isabel.
Depois da abolição, Patrocínio ainda queria voar. Mesmo com dificuldades financeiras, e longe dos jornais e do poder, resolveu construir, no final do século 19, o “Santa Cruz”: um dirigível de 45 metros. Isso depois de importar o primeiro automóvel a vapor ao Brasil. O Santa Cruz não saiu do chão, mas o projeto mostra claramente o caráter visionário do abolicionista, escritor, jornalista e farmacêutico: um homem que jamais se resignou ao chão.
José do Patrocínio nasceu em 1853, numa fazenda em Lagoa de Cima, no distrito de Ibitioca, em Campos dos Goytacazes. A maneira que ele foi gerado reflete a formação do Brasil, e também a história de Campos, como recebedora de um grande número de escravizados: Patrocínio é filho de um padre branco e uma escravizada negra (a sua história é mesmo afeita à simbolismos). Sua mãe, Justina do Espírito Santo, era uma jovem escrava mina (etnia de Gana) de quinze anos. O pai, João Carlos Monteiro, era vigário da paróquia de Campos dos Goytacazes, e um orador conceituado no âmbito sacro.
Mesmo nascendo livre — embora não tivesse a paternidade reconhecida pelo padre —, Patrocínio viveu sua infância presenciando todo tipo de abuso contra o povo negro escravizado na fazenda do pai. Talvez tenha sido essa realidade paradoxal que levou Patrocínio a carregar por toda vida um forte senso de justiça social.
Patrocínio e o escritor Olavo Bilac
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Formado em Farmácia em 1874, Patrocínio nunca exerceu a profissão. Sua verdadeira vocação se manifestava nas palavras — primeiro em Os Ferrões (1875), depois na Gazeta de Notícias, onde iniciou, em 1879, a campanha abolicionista de forma mais ferrenha. Em 1881, já à frente da Gazeta da Tarde, fundou a Confederação Abolicionista, ao lado de Joaquim Nabuco e André Rebouças, defendendo a abolição ampla, imediata e sem indenização.
A palavra e a espada de José
O romancista e político inglês Edward Bulwer-Lytton, contemporâneo de século de Patrocínio, escreveu uma peça histórica: “Cardinal Richelieu”. No enredo, Richelieu, ministro-chefe do rei Luís XIII, descobre um plano para matá-lo, mas como padre ele é incapaz de pegar em armas contra seus inimigos. Seu pajem (uma espécie de ajudante de ordens medieval), François, aponta:
— Mas agora, ao seu comando estão outras armas, meu bom Senhor!
Richelieu concorda:
— A caneta é mais poderosa que a espada. Tire a espada; os Estados podem ser salvos sem ele!
Teria sido a primeira vez que o famoso ditado “A caneta é mais poderosa que a espada” foi escrito. A luta de Patrocínio era travada nas trincheiras da intelectualidade, da literatura e do jornalismo — mas por vezes escolheu a espada no lugar da pena: viajou ao Nordeste, ajudou na fuga de escravizados e organizou comícios que inflamavam massas — algo que seus cronistas lembram como oratória inflamada.
Criou (embora há divergências entre historiadores sobre a autoria de Patrocínio) ainda a Guarda Negra, composta por negros libertos fiéis ao império, para protegê-la — uma instituição incomum, vista por uns como milícia, por outros como irmandade.
As contradições, a República e Isabel, a redentora
Princesa Isabel
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A Guarda Negra representou a maior contradição de Patrocínio. Uma república parecia ser o modelo que o Brasil precisava, traria desenvolvimento, democracia e independência dos colonizadores. Derrubar o Império, porém, era impossível para José do Patrocínio.
A abolição — de direito, mais que de fato — aconteceu, realmente, pelas mãos do Império, em 13 de maio de 1888, pela “redentora” princesa Isabel. E em um gesto (mais uma vez) simbólico, Patrocínio beijou as mãos de Isabel após a assinatura da Lei Áurea.
Patrocínio era um homem de dois mundos naquele momento. Embora um defensor — talvez o maior deles — da abolição, não queria ver o Império expulso do Brasil aos pontapés. Não pelo rei, a quem tinha desprezo, mas pela gratidão e admiração que tinha por Isabel. A lei que ela assinou, no prédio do Senado, no centro do Rio, decretava que, a partir de sua publicação, nenhuma pessoa preta poderia permanecer escravizada no Brasil. Os homens e mulheres acorrentados seriam libertos.
Patrocínio sabia que o simples ato de Isabel não resolveria a exclusão e a violência, mas ficou extasiado vendo a princesa encarando os senadores — que eram todos homens — e usando seu poder para abolir aquele sistema perverso. Isabel era uma mulher de pele rosada, estatura baixa, com olhos azuis profundos e determinados, que lhe conferiam um ar de mandona; como de fato era.
No dia da assinatura, o Senado estava cheio e o movimento abolicionista movimentava todos no Rio de Janeiro. O “campo da cidade”, que mais tarde seria conhecido como “campo de Santana”, ficou repleto de curiosos. Os Senadores se acomodaram no interior do Palácio Conde dos Arcos — o prédio de quatro pavimentos formava uma ponta de flecha na perspectiva de quem entrava nele, onde Patrocínio entrou, minutos depois de Isabel, mesmo não sendo ele alguém que poderia entrar ali em dia de sessão. Mas foi convidado pessoalmente pela princesa, em reconhecimento ao fato de que poucas pessoas no país mereciam mais do que ele ver aquela lei ser assinada.
A sala da sessão seguia o padrão inglês de parlamento. Galerias circundavam uma espécie de arena, onde no centro ficavam duas mesas dispostas frente a frente; uma ao pé do grupo governista e outra do oposicionista, como se delimitasse e representasse cada grupo de senadores. Exatamente como uma arena, ou um estádio. As discussões daquele dia eram resultado de movimentos anteriores, e seria ali apenas uma formalidade para concluir o que já estava acordado. Abertos os trabalhos, Isabel pediu seu direito; queria usar de imediato a Fala do Trono e abolir a escravidão no Brasil (esse é um trecho do livro “As Asas de Um Dirigível”, com lançamento previsto para 2026).
O exílio e o fim
Por sua devoção à Isabel e à defesa do Império, Patrocínio entrou em rota de colisão com os republicanos, com luta armada, pela Guarda Negra e no apoio em outras revoltas que aconteciam no país. Mas, como se sabe, o Império foi derrubado e os republicanos estariam no poder do Brasil em pouco tempo depois da assinatura da abolição. E Patrocínio foi exilado no Amazonas.
Patrocínio consegue voltar alguns anos depois ao solo carioca, mas não deixou de ser persona non grata. Não conseguiu retomar o prestígio do Cidade do Rio — jornal que havia fundado em 1887 —, e politicamente manteve-se exilado.
José do Patrocínio coloca um ponto final em sua história em 29 de janeiro de 1905, em meio a uma crônica que escrevia sobre os direitos dos animais, sendo vítima de tuberculose. Seu funeral atraiu milhares de pessoas. A ave preta, moradora de Inhaúma, nascida em Lagoa de Cima, sucumbiu. O vento, antes cúmplice, não segurou seu mais seu voo. A pena de Patrocínio, leve demais para o chão, pesada, demais para o tempo, dançou sozinha no fim.
Bibi
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A história de amor e familiar de José do Patrocínio é deveras interessante, mas seus detalhes ficarão para outro artigo. Em resumo, teve cinco filhos com Maria Henriqueta Sena (Dona Bibi): dois faleceram ainda na infância, e Tinon (que desapareceu), Maceu e Zeca, este também jornalista como o pai.
Se o leitor aceitar um último simbolismo, Bibi era branca, e o casamento enfrentou resistência, especialmente do pai dela, o capitão Emiliano Rosa Sena, que mais tarde acabou cedendo aos encantos do genro o ajudou a comprar um jornal.
Patrocínio encarna o que há de mais rico em nossa memória comunitária, no Brasil, e especialmente campista, onde ele nasceu. Um homem que uniu emoção e ação, passado e futuro, com a coragem de sonhar alto — literalmente — ao construir seu próprio balão, o dirigível Santa Cruz.
Nem todo voo precisa de céu. Alguns precisam apenas de coragem.
Parte da política no Brasil e no mundo é feita de memes — talvez parte significativa da comunicação política, hoje, esteja baseada em vídeos, fotos ou animações virais com um toque de humor, em geral ácido.
O termo meme parece novo, mas surgiu em 1976, no livro O Gene Egoísta, do biólogo Richard Dawkins. É um trocadilho: mimesis — que significa imitação, em grego — e gene. Para ter algum tipo de eficácia, o meme precisa se multiplicar, precisa ser capaz de contaminar a tela de quem está recebendo a ponto de fazer a pessoa compartilhar, e assim contaminar outra pessoa. É a centralidade da vida de um vírus: precisa viralizar.
Mas, uma vez viral, o meme é capaz de fazer estragos — ou de produzir os efeitos que o criador quis. Existem pessoas especializadas nesse assunto e com estratégias muito bem desenhadas para que um meme ganhe vida e contamine o maior número de pessoas possível. Os memes não são ingênuos como às vezes parecem, e por trás deles está um bocado de inteligência artificial e humana.
O meme não precisa da realidade para viver. Basta que a ideia seja vendida de forma com que as pessoas acreditem ou, pelo menos, não questionem. Se fez rir, é ainda melhor.
Há exemplos célebres de memes políticos bem-sucedidos. Um dos mais famosos é uma montagem com o rosto do presidente russo Vladimir Putin maquiado, tendo ao fundo uma bandeira com as cores do arco-íris. Apelidado de “Putin drag queen”, o meme tornou-se símbolo da luta contra a homofobia no país. Por aqui, o perfil “Dilma Bolada”, no Twitter e Facebook, conseguiu suavizar a imagem da ex-presidente Dilma Rousseff. Não foi suficiente para impedir o impeachment — também não se pode atribuir tanto poder aos memes —, mas ajudou a reposicionar sua imagem entre parte do eleitorado.
Ilustração de Vladimir Putin popularizada durante as manifestações em favor dos direitos LGBT na Rússia em 2013
O ex-presidente Bolsonaro era um meme ambulante. Com frases de efeito, ideias desconexas e grosserias constantes, produzia material farto tanto para a oposição quanto para os aliados, provando que um meme também pode ser eficaz ao se comunicar com um público específico, imune a qualquer argumento contrário. Em episódio recente, Bolsonaro decidiu dar um recado em inglês de cima de um trio elétrico. Se não bastasse a pronúncia sofrível, as palavras não faziam sentido. O vídeo viralizou e se transformou em uma infinidade de memes. A maioria jocosa, mas, para alguns, o efeito foi o de ver um político corajoso e autêntico.
Na disputa memética mais recente, o governo Lula III vem sentindo um gostinho de vitória que há muito não experimentava. O personagem criado com IA para o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta — “Hugo Nem se Importa” — conseguiu comunicar, com eficácia simbólica e narrativa, que o Congresso tem agido em defesa das parcelas mais ricas da sociedade. A disputa gira em torno da taxação do IOF, mas a batalha principal está em outro campo: o do imaginário público.
Porque, em tempos de redes sociais, a política deixou de ser apenas projeto de país — tornou-se uma disputa de símbolos, frames, viralizações. Quem comanda a linguagem do meme, comanda parte do debate público. E, no final, o que pode parecer apenas uma piada, pode ser, na verdade, a vitória de uma ideia.
Governar, no Brasil, é também meme. Rir é um ato político. E compartilhar, às vezes, é escolher um lado.
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O debate sobre o ativismo judicial no Brasil se intensificou na última década, especialmente diante da atuação do Supremo Tribunal Federal e da herança da Lava-Jato. A controvérsia tem fundamento: é possível perceber excessos em ações do poder que julga, e operações dos órgãos de repressão sob seu guarda-chuva — como exemplo, a citada Lava-Jato — resultaram em pessoalidades e interesses políticos evidentes. Porém, assim como é preciso entender o “homem e suas circunstâncias” — frase do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) —, torna-se necessário pensar o mesmo das instituições e dos poderes.
Desde que John Locke e Barão de Montesquieu — figuras-chave do Iluminismo e da teoria política — pensaram o Estado como uma estrutura onde há necessária separação entre os poderes, defende-se a ideia de equilíbrio. É preciso que haja limitações para exercer o poder, e também que diferentes estruturas concentrem atividades com princípios distintos para que o poder possa ser efetivamente exercido. Um jogo que deve ser equilibrado, pelo menos em democracias.
No sistema tripartite, o judiciário, o executivo e o legislativo formam um equilíbrio de vértices móveis, onde o protagonismo de um poder pode se inclinar conforme o peso das circunstâncias; vértices que não podem ser estáticos. A depender das circunstâncias, esse “triângulo” deve inclinar-se para que a base esteja sustentada por poderes submetidos a um outro de ponto mais elevado. E essa posição deve ser invertida caso mude as circunstâncias novamente; não há supremacia de poderes numa democracia, o que precisa acontecer é alternância.
Além da tripartição dos poderes, deve existir hierarquia e equilíbrio de forças dentro de cada um. O órgão máximo de um poder não pode decidir sozinho, ele precisa, além de se submeter às leis constitucionais, entender que faz parte de uma estrutura maior, onde o poder deriva da coletividade e sempre deve ser exercido através de representações colegiadas. O Senado interfere no Supremo, assim como o Supremo pode interferir no governo executivo. Em um jogo de forças complexo, a democracia se consolida quando decisões podem ser alvo de contestação.
Quando se contestam julgamentos e as penas definidas a partir deles, não se pode contestar a legitimidade do poder judiciário em fazê-lo, e sim os indivíduos que estão investidos em togas e funções públicas, sob pena de subverter os mesmos princípios que se pretende mostrar maculados. Um juiz exerce seu poder primeiro — de julgar — revestido de prerrogativas conferidas por um acordo social onde liberdades e direitos são limitadas em nome do interesse coletivo — onde o próprio juiz está inserido. Portanto, seus julgamentos não podem ser isentos de contestação. Quanto mais acima da pirâmide, mais necessário se faz o equilíbrio para manter-se nessa posição.
Mas existe uma diferença fundamental entre equilíbrio e revanchismo. Na relação entre Senado e Supremo, por exemplo, trata-se de movimentos dos vértices de poder, onde os excessos são punidos, quando estes são praticados por indivíduos. Caso um juiz supremo esteja sob o escrutínio de senadores, não se pode confundi-lo com o órgão colegiado que ele faz parte. Nesse caso, não está em julgamento o Supremo, e sim decisões proferidas por seus integrantes, no interior de sua complexa engrenagem institucional.
Cabe ao Supremo o julgamento de uma trama golpista que visava subverter por completo a democracia e a ordem institucional vigente. Cabe aos julgadores do topo da pirâmide determinar — após julgamento feito com observação de todas as garantias — quais serão as punições dos indivíduos envolvidos na tentativa de golpe. Para que a ameaça de golpe de Estado tenha alguma gravidade e possibilidade de dano, ela deve ter sido arquitetada por representantes de grupos com forte poderio armado, que podem ser formados fora das estruturas democráticas, ou por integrantes do alto escalão dos poderes constituídos. A estrutura do Estado não sofre ameaça caso seja atacada por organizações ou pessoas sem essas características, uma vez que o acordo social delegou ao Estado o uso da força e da coerção.
Julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da trama golpista, onde estão acusados políticos, militares e um ex-presidente da República.
A condenação dos responsáveis por atentarem contra o Estado Democrático de Direito é legítima e necessária. Mas nenhum poder pode se cristalizar sobre o trauma de um golpe frustrado. Passado o julgamento, a democracia só estará verdadeiramente protegida se os vértices do poder voltarem a se mover. Um Supremo fortalecido pelo enfrentamento do extremismo deve seguir submetido ao controle constitucional, como qualquer órgão republicano.
O Senado, ao exercer sua função fiscalizadora, deve fazê-lo em nome da legalidade — e não da vingança. E o Executivo, apesar de eleito, não pode confundir maioria com soberania. A saúde democrática não se mede pela rigidez das instituições, mas por sua capacidade de flexionar-se sem romper.
Sob ataque, a democracia precisa sim se proteger. E o peso de circunstâncias excepcionais, como as vividas nos últimos anos, pode momentaneamente inclinar a pirâmide democrática — mas ela precisa voltar a se equilibrar. O poder que se fixa, mesmo em nome da democracia, deixa de ser equilíbrio — e começa a ser dominação.
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O quadro de natureza morta vai ficando mais visível, antes disforme pelos olhos lacrimejantes por acordar de pouco. Levanto a contragosto, me arrasto até o banheiro, passo um café forçado. Não ponho a mesa, levo apenas uma xícara esfumaçante e um biscoito desses de água e sal. Outros elementos da casa vão ficando mais nítidos na mesa de café; olho para as paredes e tento me alegrar, procuro sentimentos de antes, agora estáticos em porta retratos. Há na parede da sala outras obras de arte, e tento alguma profundidade em cores abstratas. Talvez fosse possível caso fossem pintadas à mão, mas a superficialidade atrás do vidro me deixa desencantado.
A casa que existia na minha memória era maior, mais movimentada e barulhenta. Havia sempre sons vindos da cozinha — vidros e louças se tocando; de água correndo também. Ouvia minha mãe reclamar dos cachorros, às vezes sozinha, outras me gritando para ajudar. A mim, ou ao meu irmão mais velho. A menina, do meio, ouvia e punha a mesa de vez em quando. Era uma família tradicional, com papéis definidos. O homem trabalhava, a mulher cuidava da casa e da prole. Igreja aos domingos. Assuntos proibidos. Estudo em dia, mesada para sair aos fins de semana.
Via meu pai, ainda vivo, lendo o jornal; papel físico, folhas amareladas, barulho e pigarro quando as páginas eram viradas. Isso acontecia mais aos domingos. Nos dias de semana saía cedo, despedia-se da mamãe enquanto ela lavava a louça. Não era um pai presente, mas sua ausência era sempre sentida. Principalmente por minha mãe e meu irmão, que sempre o procurava na arquibancada nos jogos de futebol e campeonatos de arte marcial. Minha irmã e eu estávamos mais envolvidos em experiências lúdicas; simulações de programas de TV ou salas de aula improvisadas no quintal.
Memórias que ficaram embaçadas ao ver meu filho entrar pela sala, sonolento, esfregando os olhos e sentando ao meu lado à mesa de café, ainda com apenas uma xícara. Esfrego seus cabelos e pergunto o que quer comer. Ele nega e mantém a cara de sono. Talvez o garoto tenha mais memórias com o avô que eu tenho. Com a idade, meu pai foi se transformando e os netos conseguiram aproveitá-lo com outra postura perante a vida — mais amorosa, mais dedicada à família e mais leve.
“Pai, o vovô sempre morou aqui?”, ele perguntou, também olhando para os porta-retratos. “Sempre. Gosta desta casa?”, continuo. A conversa que seguimos me mostrou que as crianças tinham apenas boas memórias da casa. Confirmou minha suspeita que percepções diferentes se dão sobre o mesmo local e contexto. Paredes e portas de madeira podem significar acolhimento ou abafamento, a depender da experiência. Barulhos na cozinha podem ser afetivos, ou prenúncios de choro abafado. Os cachorros latindo lembram brincadeiras no quintal do mesmo modo que podem recordar agitação por algum perigo iminente.
Estamos na mesma mesa que tomei café da manhã durante a infância e adolescência. Não voltava com frequência depois de adulto, talvez por algum bloqueio inconsciente. Mas sempre que teimava em contrariar as estratagemas da minha cabeça, gostava de estar ali. Meu pai invariavelmente também sentava-se à mesa nessas ocasiões. Talvez para ele eu ainda era o mesmo menino sonolento que vejo agora diante de mim. Talvez meu filho sempre será também, mesmo já homem feito. Gostava da conversa e pelas risadas mútuas ele também gostava. Algumas vezes me olhava com orgulho, em outras, reprovação. Política, motos e cavalos divergiam no gosto, mas sempre eram aprendizados irrevelados. Dinheiro e lembranças de família eram temas conflituosos, sempre. Evitávamos.
Meu pai faleceu há algumas horas. Minha mãe partiu antes dele, como sempre quis. Não sei se por pensar que não resistiria à saudade ou simplesmente por medo da solidão. Ele foi o único homem que ela se relacionou amorosamente. Mesmo que meu pai nunca tenha reconhecido, a partida dela o adoeceu; deprimiu. Quando o corpo demonstra fraqueza ou doenças, normalmente os pensamentos já foram comprometidos por angústias e dores repetidas.
O velório começará às onze. A casa já começa a transmitir outros barulhos. Outros cômodos começam a se abrir; familiares acordando, escovando os dentes e conversando baixo. Minha irmã dormiu no antigo quarto dela, eu quis dormir no quarto do papai. Meu irmão não veio, disse ter ficado preso em compromissos de trabalho. Sentimos sua falta. A casa estava cheia de gente. Apesar do pesar, parecia uma festa colorida, mas truncada. A falta de um dos filhos seria registrado no caderno de frustrações de meu pai — ele estaria anotando, mesmo enquanto plasma.
Já são quase dez e meia. Enquanto mudo a roupa no quarto, buscando algo de meu pai para vestir, o som do abrir das velhas portas do armário embutido dele me trazem lembranças dos bons momentos. Sorrio. Na cama, o celular acende. É uma mensagem de meu irmão: “estou indo”; respondo perguntando se queria que o esperasse em casa. Demonstro uma frieza de quem já sabia que ele não deixaria de estar presente. Digo que estamos felizes de voltar, todos, à antiga casa. “Não consigo, irmão”. Respeito. Lembranças diferentes de ambiências iguais.
Campos dos Goytacazes foi uma vila importante do Império, e depois, em 1835, uma cidade importante para a província do Rio de Janeiro. A importância econômica e política era tamanha que houve chances reais de Campos ser a capital — a “civilização do açúcar”, como definiu Alberto Lamego, era uma terra próspera e lutava por reconhecimento regional e nacional.
Mas os ventos políticos sopraram para outro lado. O mesmo Decreto que criou a província do Rio de Janeiro, deu nascimento à cidade de Campos dos Goytacazes, mas transferiu a capital para Niterói (o Rio era a capital do Brasil). Campos, que já havia pertencido ao Espírito Santo, perdeu a disputa pela centralidade da província fluminense por vários fatores, mas a ausência de representação na Assembleia não estava entre eles.
Até a República (1889), os representantes de Campos eram maioria no legislativo provincial. O Brasil que nascia a partir do fim do Império passou por transformações econômicas, sociais e políticas significativas e Campos foi perdendo espaço para outras regiões do Estado, como o Vale do Paraíba (pela produção de Café) e pelo entorno urbanizado do Rio de Janeiro, que se mantinha como capital do país.
E Campos?
Niterói se manteve como a capital do Estado até a fusão do Estado da Guanabara com o Rio de Janeiro, em 1975 — A cidade-estado da Guanabara surgiu como solução política após a transferência da capital para Brasília, ainda sob o governo Juscelino Kubitschek, para manter o Rio de Janeiro como território autônomo. E Campos?
Em todos os movimentos que o Estado do Rio de Janeiro passou na combalida história brasileira, desde 1808, quando a chegada da Família Real lusitana desembarcou em terras fluminenses, Campos foi figura de proa. Já era uma vila economicamente importante, tinha condições geográficas interessantes e construía sua urbanidade. A questão parece ser que Campos sempre esteve no papel de fornecedora da capital. Fornecia açúcar, água, recursos humanos e servia de entreposto. Servia para suprir, mas não para comandar.
Marc Ferrez. Ilha de Boa Viagem, c. 1880, Niterói, Rio de Janeiro / Acervo IMS
Diferente de outros estados, como São Paulo, o interior do Rio não passou por um processo de industrialização robusto. As usinas campistas pararam no tempo, e as cidades menores do norte e noroeste fluminenses não se desenvolveram para formar zonas industriais e comerciais importantes. Os olhos do Rio sempre estiveram voltados para a capital e seu entorno imediato.
Politicamente pelo menos, Campos, apesar de ter perdido a chance de ser capital do Estado, nunca deixou de tentar reassumir algum protagonismo político. Essa ambição se reconfigurou ao longo do tempo: deixou de ser uma disputa territorial e tornou-se uma busca por influência no tabuleiro do poder fluminense. No final dos anos 1990, o então deputado federal Anthony Garotinho venceu a disputa pelo Palácio Guanabara e levou com ele a esperança de que Campos, enfim, ocupasse um centro de decisões. O governo Garotinho, com todas as suas polêmicas, tentou conferir alguma relevância ao interior, mas acabou se rendendo à capital e ao enorme colégio eleitoral da baixada.
Agora, mais de duas décadas depois, a cidade assiste ao possível avanço de outro nome de seu território rumo ao governo estadual. Rodrigo Bacellar, atual presidente da Alerj e figura de articulação hábil, aparece como candidato natural ao Palácio Guanabara. A história se repete, mas em outro tempo. Bacellar representa uma nova geração, mais pragmática e menos simbólica, que aposta no poder por meio da governabilidade, não da retórica. Se chegar ao cargo, será legítimo perguntar: o que isso significará para Campos?
Talvez, diferente do que se imaginava no século XIX, o poder político não precise mais de sede geográfica, mas de projetos que incluam de fato o interior fluminense. A cidade que já sonhou em ser capital talvez deva hoje sonhar em não ser apenas um feudo eleitoral. Afinal, se a história não soube premiá-la com a capitalidade, ainda pode ensiná-la a exigir centralidade nos rumos do Estado.
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Manter um patrimônio histórico de pé — seja ele material ou imaterial — é uma obrigação? Responder afirmativamente pode ser a primeira reação do leitor, principalmente daquele que tem algum tipo de ligação com a cultura, em suas mais diversas formas. Mas será essa a resposta da maioria das pessoas?
Tomemos o caso de Campos dos Goytacazes como exemplo. Indubitavelmente é uma cidade histórica: participante ativa da economia do Brasil quando ainda era colônia de Portugal, berço de personagens relevantes e um dos primeiros lugares do país a contar com energia elétrica, imprensa, livraria e transporte ferroviário. Não faltam elementos, ainda presentes na cidade, não apenas para comprovar toda essa história, mas também compondo a paisagem diária das pessoas. No campo imaterial, o conhecimento acumulado por séculos — produzido na miscigenação entre indígenas, escravizados e portugueses — reflete-se em doces, danças, religiosidade, linguagem e comportamento. Portanto, era de se esperar que existisse, entre os campistas, um sentimento de pertencimento ou, sendo ainda mais otimista, um sentimento de orgulho pela história da cidade.
Mas não é o que se percebe. Não há envolvimento da população com os patrimônios — salvo em grupos sociais específicos —, tampouco se vê problematização sobre seus usos e origens, que em geral fazem parte de uma história de exploração de pessoas escravizadas. Um canal artificial urbano histórico, o segundo maior do planeta, corta o centro da cidade e o seu bairro mais valorizado, mas passa despercebido pela maioria. Chamado de valão, o canal Campos–Macaé nada mais representa para a população do que um depositário de esgoto e um obstáculo físico à travessia da avenida. Fechá-lo, ao que tudo indica, não causaria grande comoção popular; pelo contrário.
Mas por que isso acontece? Antes de culpar a apatia da população ou o desconhecimento sobre a existência e o significado dos patrimônios, é preciso compreender os processos que levaram ao descaso — não apenas da população, mas também de pessoas com poder de mando, investidas em cargos públicos, sejam legislativos ou executivos, que pouco fizeram para proteger os bens históricos. Revelam, assim, o mesmo desconhecimento e a mesma apatia.
Proteger para quê?
A proteção pela proteção não se mostra eficaz. Proteger para quê? Restaurar com dinheiro público sob qual justificativa? Com qual finalidade de uso? Atingindo quantas pessoas? Com que tipo de acessibilidade e de democratização do espaço? Caso essas perguntas não sejam respondidas, manter de pé um patrimônio torna-se uma imposição de uma elite intelectual ou cultural que, muitas vezes, tampouco tem respostas para tais indagações.
Saindo um pouco de Campos, temos um exemplo exitoso de uso de patrimônios históricos na capital, Rio de Janeiro: Theatro Municipal, Igreja da Candelária, Arcos da Lapa, Forte de Copacabana, Cais do Valongo, Real Gabinete Português de Leitura — todos são utilizados e valorizados pela população carioca e por um intenso fluxo turístico. Embora tenham realidades distintas, tanto Campos quanto o Rio precisam lidar com os espólios de sua própria história, e decidir se agem ou se omitem.
Theatro Municipal - centro do Rio de Janeiro
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Prefeitura do Rio de Janeiro (RioTur)
De volta à realidade campista, observamos que patrimônios significativos pertencem a pessoas físicas, associações religiosas ou classistas e outros tipos de representação da iniciativa privada. Não há óbice à restauração de patrimônios por particulares, mesmo que falem à coletividade. Pelo contrário: é obrigação legal dos proprietários zelar pelo bem. Mas a realidade mostra que, além de dispendiosa, a preservação exige planejamento e ações de longo prazo, com conhecimentos técnicos específicos. A exploração econômica de um patrimônio histórico é possível e desejável em alguns casos, mas depende de investimentos e está sujeita a regras que muitas vezes inviabilizam o projeto — o que leva a iniciativa privada a não assumir tais riscos.
Cabe a quem proteger?
Partindo-se do princípio de que um patrimônio histórico deve ser preservado por seu valor cultural, memorialístico, artístico ou educativo — mesmo que não haja clamor popular por sua manutenção —, caberia ao poder público promover seu restauro e conservação. Ora, se um bem material merece, pelos motivos citados, perpetuar-se no tempo para que a coletividade possa desfrutá-lo, nada mais justo que seja ela própria a arcar com os custos.
O canal Campos–Macaé já citado pode cumprir funções como recurso hídrico, auxiliar na saúde pública, servir de modal de transporte e outras funções que uma obra de tais características possa abarcar. Isso é algo que se torna palpável à população e, portanto, justifica ações públicas. Mas tomemos o exemplo de um solar do século XIX, localizado às margens de uma rodovia federal, distante do centro de Campos e pertencente a particulares (família Lamego). Conhecido como Solar dos Airizes, o local foi moradia do geógrafo, escritor e pesquisador Alberto Lamego e abrigou uma vasta biblioteca e pinacoteca, que atraíram visitas ilustres.
Inicío das obras de sobrecobertura no Solar dos Airizes
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Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Hoje, o solar encontra-se em estado lastimável, deteriorado pelo tempo e pelo abandono. Possuindo tombamento federal, os herdeiros foram impedidos de vendê-lo ou demolí-lo, e compelidos a preservá-lo. Na prática, o solar foi completamente abandonado. Algumas ações pontuais tentaram adiar sua ruína, e uma ação judicial foi promovida pelo Ministério Público — a quem compete constitucionalmente a defesa do patrimônio histórico, como bem difuso. A Justiça entendeu que a família não tinha condições de manter o imóvel e condenou a Prefeitura de Campos a restaurá-lo integralmente e lhe conferir uso.
O valor do Solar dos Airizes é inquestionável — não apenas por sua arquitetura e por representar parte da história da região, mas também pela imaterialidade cultural e artística que abrigou. É, também, um bem educativo: erguido com mão de obra escravizada, revela, em sua forma e distribuição espacial, como a sociedade campista e brasileira convivia com a escravidão — e dela se beneficiava economicamente. Mas esse valor é comunicado à população? Os elementos que o tornam único dialogam com a maioria das pessoas?
A resposta a essas perguntas está diretamente ligada à ação ou omissão do poder público. Embora “agradar ao público” não seja a finalidade dos poderes constituídos, é necessário que o valor de um bem protegido seja reconhecido pela população — ou, ao menos, por parcela significativa dela. Quando permanece restrito aos nichos acadêmicos e culturais, um patrimônio perde sua razão de existir, pois perde a capacidade de exercer um papel educativo e transformador coletivo.
Não se trata, porém, de medir a importância histórica de um patrimônio por sua popularidade, mas é necessário que ele tenha significado — e, ainda mais importante: uso. O Theatro Municipal, no Rio de Janeiro, tem significado e uso, e dialoga com uma parte significativa da cidade. Embora ainda elitizado, caso entrasse em processo de abandono, não passaria despercebido — nem pela população, nem pelo poder público, tampouco pela iniciativa privada, que veria ali uma oportunidade de investimento. O mesmo não se aplica ao Solar dos Airizes. Estaria a diferença na relevância histórica dos imóveis ou no uso que possuem?
Prefeitura de Campos dos Goytacazes
Como proteger?
A proteção ao patrimônio histórico não é apenas material. Os instrumentos legais hoje existentes, como o tombamento, não garantem sua preservação. A forma mais eficiente de garantir a sobrevivência de um patrimônio — em Campos, no Rio, no Brasil e no mundo — é conferindo-lhe uso.
Usar um patrimônio não significa necessariamente lucrar com ele. Um museu não precisa dar lucro, pois serve como abrigo de itens, documentos e informações que a coletividade reconhece como importantes. No entanto, um museu pode e deve servir de espaço para exposições e eventos com retorno financeiro, atuando com cultura e arte.
A palavra-chave para a sobrevivência de um patrimônio é parceria, seja ela público-privada ou não. No exemplo do Solar dos Airizes, não se pode imaginar sua sobrevivência sustentável sem que um uso lhe seja conferido. Esse uso pode envolver a iniciativa privada, valendo-se da obrigação do poder público em restaurar o bem e oferecendo, em contrapartida, empregos, desenvolvimento econômico e turístico, e colaboração na manutenção do imóvel.
É possível, assim, percorrer um caminho inverso da preservação: salvar primeiro, dar sentido depois. A partir do momento em que um uso planejado e coerente com as especificidades do bem é colocado em prática e comunicado à população, as vivências ali geradas criam memórias coletivas e senso de pertencimento.
Salvar um patrimônio é, antes de tudo, uma escolha política e cultural. Escolhe-se preservar não apenas uma edificação, mas a memória que ela carrega e os significados que pode produzir. Em vez de esperar que o sentimento de pertencimento brote espontaneamente da população, talvez devêssemos construí-lo a partir do uso, do acesso, da partilha e da vivência. Um patrimônio vivo não é o que apenas permanece em pé, mas o que se faz presente na vida das pessoas. O Solar dos Airizes, como exemplo ilustrativo, ainda pode cumprir esse papel — se houver coragem para restaurá-lo e inteligência para devolvê-lo à cidade.
Farol de São Tomé, Campos, 1930.
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Arquivo
Quando Nilo Peçanha assumiu a Presidência da República sabia que seria um mandato curto. Ocupava o cargo de vice e, quando o presidente Afonso Pena faleceu, em decorrência de uma pneumonia, já se especulava fortemente pela sucessão. Eram tempos conturbados aqueles do início do século, e Nilo foi destinado ao cargo em junho de 1909, ficando até novembro de 1910.
Era preciso deixar uma marca, e Nilo escolheu a educação e a inclusão. Em um país que se formava republicano, o primeiro presidente negro do Brasil tratou de criar o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) — antecessor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — e retomou o projeto de criação de escolas profissionais que buscaria incluir no mercado formal os excluídos de processos histórico-sociais, recentes naquela época, como o fim da escravidão. O programa federal das Escolas de Aprendizes Artífices tomava corpo e Nilo inaugurou 19 escolas no Brasil, todas instaladas em capitais, com exceção de uma: em Campos dos Goytacazes.
A unidade de Campos foi a nona a ser criada no Brasil, com a implantação de cinco cursos: alfaiataria, marcenaria, tornearia, sapataria e eletricidade. Nilo Peçanha comprava então uma briga pelo seu bairrismo. Natural de Campos, Nilo sofria preconceito por sua origem e pela cor de sua pele. Era chamado nos meios políticos de “mulato do Morro do Coco”, em tom pejorativo. E, talvez por isso, tenha batido o pé e decidido pela ida de uma das escolas para Campos. Dessa decisão nasceram as Escolas Industriais e Técnicas, de ensino médio e secundário, as Escolas Técnicas Federais (ETFC) e nos anos 1990 os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET).
Escola de Aprendizes Artífices: legado do curto mandato de Nilo Peçanha
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Arquivo Nacional
Hoje, o que era Cefet se transformou em IFF, Instituto Federal Fluminense, e atualmente conta com 12 campi, reunindo mais de 15 mil estudantes e 1.500 servidores ativos, entre professores e técnicos administrativos.
Campos, Cidade Universitária?
São inegáveis as contribuições econômicas e sociais trazidas por um Instituto dessa magnitude, carregando toda essa história. A decisão de Nilo em trazer o ensino técnico para Campos possibilitou que a cidade se transformasse, e o interior do Rio de Janeiro pudesse ter opções próximas à formação de seus habitantes.
Campos dos Goytacazes se transformou em um polo regional em educação, e pode ser considerada uma cidade universitária quando olhamos para uma fotografia que mostre os números atuais de cursos ofertados, instituições de ensino superior e alunos matriculados. No ensino federal, a Universidade Federal Fluminense (UFF) compõe esse quadro em Campos e também traz contextos históricos e de luta social significativos.
Enquanto instituição, a UFF foi criada em 1960, com sede em Niterói. Para avançar ao interior do Estado, buscando atender um dos pilares primordiais da educação superior pública — descentralizar e democratizar o acesso — instalou em Campos o Departamento de Serviço Social (SSC), dois anos depois. Havia na cidade um movimento orgânico que ansiava por cursos superiores de ensino, não apenas para que os campistas e fluminenses do interior pudessem ter formação, mas para que a academia pudesse contribuir para o crescimento da cidade, com pesquisa e extensão. O curso de Serviço Social se transformou em uma referência na área, formando diversos profissionais.
Embora de importante contribuição, a UFF em Campos não queria ficar apenas no Serviço Social, e debates internos aconteciam para achar um caminho para expansão, tanto de cursos como do campus. Em 2003, começaram a surgir caminhos para a isso, e em 2007, com o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), isso parecia se tornar realidade.. A pesquisadora Raquel Isidoro, graduada pela UFF Campos e doutoranda em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional na UFRJ, publicou um artigo recente na edição brasileira da francesa “Le Monde Diplomatique”, onde trouxe um relato de sua experiência com o Reuni e com a UFF Campos.
“No âmbito da UFF em Campos dos Goytacazes, estava prevista a construção de um novo prédio para salas de aula e a criação do Campus II, que abrigaria os cursos recém-criados de Geografia, Ciências Econômicas e Ciências Sociais (...) No entanto, o cronograma das obras de infraestrutura previsto para receber os novos cursos não foi cumprido, o que gerou desafios significativos à comunidade acadêmica. Diante dos atrasos, movimentos estudantis e coletivos passaram a pressionar pela efetivação das estruturas prometidas. Nesse cenário, a equipe diretiva do Polo Universitário de Campos dos Goytacazes (PUCG) precisou, inicialmente, recorrer a instituições privadas e escolas municipais para viabilizar o funcionamento das turmas e organizar os espaços da secretaria e do apoio docente. Em 2010, com o agravamento da situação, foi firmado um acordo entre o MEC e a Reitoria da UFF para o aluguel de módulos metálicos — os contêineres — como solução provisória”, disse Isidoro.
Do Reuni em 2003 e dos contêineres de 2010, o sonho cultivado por alunos e docentes se transformou em realidade numa segunda-feira, 14 de abril de 2025. Com a presença do presidente da República — assim como Nilo em 1906 —, Campos recebeu um grande e novo campus da UFF, com instalações que somaram R$ 74,4 milhões, segundo o governo federal. Composto por dois blocos, com sete andares cada um, estão prontas para uso 36 salas de aula, 28 gabinetes de professores, 11 laboratórios, uma biblioteca, um auditório, diretórios acadêmicos e administração. Os prédios têm, ainda, elevadores e escadas de incêndio (Folha1).
Reprodução/UFF Campos
Os novos prédios da UFF foram concluídos, como toda grande obra, através de esforço coletivo, e por consequência de um encadeamento de ações históricas. Políticas públicas bem construídas dependem de articulação e disponibilidade de verba, mas para que sejam viabilizadas é preciso que a sociedade civil seja mobilizada e que avanços reais sejam demonstrados com a aplicação dela. Desde as articulações pelo Serviço Social em Campos, passando pelos “filhos do Reuni”, o campus erguido em um terreno cedido pela antiga rede ferroviária foi retomado por articulação de vários deputados federais, emendas de bancada e esforços suprapartidários.
Ianani Dias
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Reprodução
“Eu entrei na UFF Campos em 2010, justamente no ano em que nos foi apresentado o projeto do novo prédio, com a promessa de que a inauguração aconteceria em 2013. Como se sabe, isso não aconteceu e, para que a universidade se adaptasse à nova realidade, estudamos em contêineres alugados, pois a estrutura era insuficiente para atender aos novos cursos e ao número crescente de estudantes vindos de Campos e de outras cidades”, disse a pesquisadora Ianani Dias, mestranda na UFF Campos do programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas. “Mas não se tratava apenas de conquistar uma estrutura física; a disputa era por uma nova concepção de universidade. O Reuni, assim como o Enem e o sistema de cotas, transformou profundamente as instituições públicas de ensino. De repente, aquelas universidades passaram a ter uma nova demanda social, acolhendo uma juventude diversa: estudantes da periferia, dos interiores e das zonas rurais — muitos, como eu, os primeiros da família a ingressar em uma universidade pública”, continuou.
Ianani e Raquel são exemplos de discentes que não ficaram apenas nas queixas e viram na oportunidade de um programa federal, o Reuni, a chance de poder expandir os muros da universidade, física e socialmente. “Não à toa, nós nos chamávamos de “filhos do Reuni”, pois éramos uma geração que acreditava intensamente nesse projeto. E, apesar da precariedade, sabíamos que aquilo que havíamos conquistado não podia retroceder. A defesa da permanência e da ampliação do acesso era fundamental”, acrescentou Ianani, na mesma linha que Raquel: “Reclamar, por si só, não basta. Nunca bastará. É preciso agir. Como fizeram aqueles que vieram antes, os que passaram por este campus e os que ainda virão. Todos nós somos parte dessa história. Alunos, técnicos, professores — somos o próprio projeto de expansão da universidade”.
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”
O escritor russo Leon Tolstói, falecido no mesmo ano que Nilo Peçanha foi presidente, ensinou que “pintar” a própria “aldeia” é uma forma de se tornar universal. Uma universidade tem o dever de cuidar da região que ela está inserida, produzindo conhecimento que contribua para mudar a realidade ao seu redor.
Campos é uma “aldeia grande” e histórica. As suas marcantes contradições produziram uma sociedade capaz de lutar por educação pública de qualidade (lutou e conseguiu também a Uenf, esta estadual, que se tornou uma referência no país) ao mesmo tempo que 47.600 famílias vivem em extrema pobreza (segundo dados do CadÚnico, 2021); ser o local de nascimento do primeiro presidente negro do Brasil e ser um dos últimos locais a abolir a escravidão; assim como presenciar lutas progressistas importantes e ter sediado um dos maiores núcleos integralistas do país.
Mas as contradições são parte do conhecimento acadêmico, e muitas vezes o ponto de partida de pesquisas. A realidade de Campos precisa ser objeto de estudo das academias que precisam dialogar com o contexto que está inserida, portanto centros como a UFF, IFF, Uenf, Universidade Federal Rural e as faculdades particulares não podem se isentar desse debate, pois fazem parte dele.
Ouvindo Ianani na véspera da inauguração dos prédios da UFF, seu relato foi de emoção: “Hoje, o que sinto é difícil de colocar em palavras. É uma mistura de orgulho, emoção, alívio e propósito. Tudo aquilo que sonhamos, lutamos e acreditamos está materializado nesse prédio. Amanhã, não se trata apenas de concreto, mas da memória viva de cada protesto, de cada ocupação, de cada faixa pintada à mão e de cada estudante que passou e foi formado por essa universidade”.
Não se pode tratar apenas de concreto. Campos e a região dependem de suas instituições de ensino para produzirem conhecimento e desenvolvimento, e na mão dupla, as universidades precisam olhar para sua aldeia. Em 1909 ou hoje, a escolha continua posta: ou Campos reconhece seus faróis, ou seguirá tropeçando na própria sombra. O IFF, a UFF e a Uenf estão aí — projetos de futuro que resistem até mesmo à indiferença.
Ainda há tempo. Mas não há farol que brilhe para sempre.
O Solar dos Airizes não é apenas uma construção antiga. O casarão, às margens da BR-356 (Campos X São João da Barra) é um testemunho de pedra e cal da formação de Campos dos Goytacazes e de toda região. Ali, sob seus telhados e paredes grossas, repousa parte significativa do que restou da arquitetura rural do século XIX — quando a cidade respirava essencialmente gado, cana e contradições — e, ainda mais importante, um testemunho vivo de todo acervo e obras produzidas por Alberto Lamego — pai e filho.
Por décadas o Solar foi uma ruína assistida. Abandonado pela família, prefeitura e sociedade campista, a construção veio perdendo sua sustentação, madeiramento e alvenaria.
O abandono do Airizes foi parar na justiça. Protegido por tombamento federal desde 1940 — três anos depois da criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) —, o Solar é objeto de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), com trânsito em julgado, onde é determinado que seu restauro completo ocorra o mais rápido possível e seus custos arcados pelos cofres da prefeitura de Campos. A decisão final da justiça, de 2020, retirou o Iphan e a família Lamego da responsabilidade sobre o restauro.
Antes da justiça bater definitivamente o martelo, o Iphan interviu no Solar de maneira contundente. Com início em 2003, obras no Airizes fizeram com que todo telhado fosse trocado, retirando-se as telhas originais e colocando outras de padrão contemporâneo. Madeiramento e alvenaria de sustentação foram também substituídas e, as que ficaram, foram descupinizadas.
Foto: César Ferreira/PMCG
Essa ação do Iphan permitiu (embora com descaracterizações) que o Solar permanecesse de pé, mas se mostrou apenas como um interregno no abandono, este que foi novamente interrompido, dessa vez pela prefeitura, em maio de 2024. Em um contrato com a firma Bruta Empreendimentos Ltda, no valor de R$ 2,2 milhões, iniciou-se os serviços de "escoramento, reconstrução do telhado e demais obras de restauração, preservação e conservação do prédio histórico".
Na primeira fase da obra, a prefeitura construiu a estrutura para cobertura de proteção. Porém, as ações de escoramento das paredes ainda estão incipientes. A sobrecobertura é essencial para proteger o prédio de chuvas e outras intempéries, mas o escoramento das estruturas internas é urgente e precisa ser feito para que o Solar consiga resistir até que as obras de restauro completo se iniciem.
Segundo a prefeitura, por meio de uma “Parceria Público Privada (PPA), as restaurações do prédio serão realizadas com parte de recursos da Lei Rouanet, por meio da Empresa Ferroport. O Prefeito apresentou a proposta de parceria aos dirigentes da empresa que, após análise, aceitaram participar do projeto de restauração, que será a próxima etapa da obra”.
Depois de décadas de abandono, o Solar dos Airizes começa a respirar com esperança de dias menos preocupantes, mas ainda agoniza. Para que outras promessas possam ser cumpridas, é preciso que o que está previsto no contrato atual seja executado, e o escoramento seja feito com a urgência e conhecimento técnico necessários.
A cobertura no Solar dos Airizes é uma vitória, e o fato de um patrimônio de sua importância ter lugar no orçamento público municipal é louvável. Mas são apenas etapas para cumprir decisões judiciais e salvar parte da história. A cobertura deve servir para proteger, não para esconder.
Uma bela e comprida mesa de madeira já estava quase completa quando cheguei, por volta de 19h30, na casa do arquiteto e empresário Edvar Júnior. Era uma terça-feira, primeiro dia de abril, e logo percebi que não seria mentira que a ideia do encontro seria atendida — havia um debate intenso já acontecendo e estavam presentes gente de várias vertentes da cultura campista.
A ideia de promover um encontro plural não seria possível sem que houvesse representantes da “rua” à mesa. A arte urbana, os terreiros, o jongo, a mana-chica e o carnaval precisavam de representantes no fórum que estava se formando ali. E estavam, e tiveram voz, assim como todos os outros presentes. Os temas da defesa do patrimônio histórico, orçamento público, ausência de secretaria de cultura, os editais da leis de fomento (e suas tentativas de serem aplicados em Campos), a Bienal e o FDP! estavam por lá também, como sempre estiveram e, sempre, trazendo angústias.
Um fórum precisa ser plural e aberto (pelo menos, o mais aberto possível) e deve, para cumprir seu intento, ser despudorado na composição dos foristas e dos temas. Explico: não se faz um fórum propositivo e com possibilidades de gerar algum tipo de ação do poder público e da própria classe cultural se houver censura sobre falas e proposições e, pior ainda, quando se quer censurar previamente um tema.
Na mesa da casa de Edvar — cenário, palco e plateia do primeiro encontro do Fórum — não tinha censura no cardápio e, mesmo tendo vinho e cerveja à vontade, não foi visto nenhuma exaltação, além das habituais de quem vive e é apaixonado pela cultura campistas; e verdades não se furtaram a serem ditas.
Entre as verdades, falou-se da falta de uma secretaria de cultura em Campos (o papel é exercido por uma Fundação, a FCJOL) e da incapacidade orçamentária e de pessoal para fazer acontecer, como se deve, todas as ações da “pasta”. Embora vista como secundária e “coisa de artista”, a cultura é geradora de receitas e de empregos como poucos outros setores — quando bem administrada e com condições para tal. Aliada ao turismo, a cultura movimenta economias em cidades grandes e importantes no mundo inteiro, assim como patrimônios históricos preservados levam milhões de pessoas para continentes distantes. Em Campos não seria diferente, mas é, na prática, por diversos fatores.
Reproduçao
O encontro foi promovido por Edvar Júnior, pelo produtor cultural Wellington Cordeiro e pelo jornalista Matheus Berriel. Dividiram entre eles as responsabilidades dos convites aos foristas e da organização do espetáculo. Com alto prestígio na classe, os três não tiveram dificuldades em preencher todos os assentos. E deles também veio a promessa de independência do fórum que, não fosse a conhecida postura dos anfitriões, seria difícil de acreditar: haveria gente do governo à mesa, da FCJOL e o próprio Edvar Júnior está como subsecretário de Turismo.
Ser independente não é apenas uma questão de postura. É preciso de condições materiais mínimas para exercê-la e muitas vezes a necessária resistência para as inevitáveis desavenças advindas da independência. E é preciso olhar para o próprio umbigo para ser independente, não por ego ou por interesse, mas para tratar das próprias ambiguidades. No fórum estavam gente da literatura, do patrimônio histórico, da música, do cinema, da fotografia, da educação, da produção e gestão cultural, da imprensa e da iniciativa privada; e nenhum deles se furtou a agir assim.
Edmundo Siqueira
Como anfitrião e exercendo um cargo de comando na prefeitura, Edvar não precisou de esforço para reforçar sua independência, pois ela já era conhecida de todos ali. Como um agregador nato, alguém com capacidade para juntar gente muito diferente em um propósito comum, Edvar chamou para a foto, ao final do encontro, e todos foram posar com um sorriso no rosto.
Todos estavam ali unidos pela cultura. Ele, o caldo cultural campista, era o elemento que dava corpo e sabor ao fórum. Esse caldo já foi reduzido muitas vezes por todos presentes e invariavelmente havia ficado azedo, por falta de apoio governamental, por burocracia, por vaidade, por falta do conhecimento do campista de sua terra ou por insensibilidade do empresariado. Mas, pelo menos pareceu, que todos saíram com esperança, novamente, e com a insistência ingênua de alma de artista.
Mesmo sendo 1º de abril, não faltou verdade no primeiro encontro do fórum. Resta saber se elas chegarão a ser ouvidas nos ouvidos insensíveis.
D.H.; Anistia; Anistia - Votacao do projeto em Brasilia; 22/08/1979
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Orlando Brito
Em 15 de março de 1979, o Brasil assistia à posse de mais um general como presidente da República. João Baptista Figueiredo — o último dos ditadores do regime militar — teve em suas mãos o dever histórico de redemocratizar o país.
“É meu propósito inabalável fazer deste país uma democracia (...) purificado o processo das influências desfigurantes e comprometedoras de sua representatividade”, disse o general Figueiredo em seu discurso de posse. Disse mais: “reafirmo a mão estendida em conciliação. Para que os brasileiros convivam pacificamente”.
A “mão estendida” de Figueiredo ganhava contornos legais alguns meses depois de sua posse. A Lei da Anistia fora aprovada no Congresso — não sem manifestações contrárias — em apenas três semanas, depois sancionada pelo governo militar. Com base no novo ordenamento, estavam anistiados os chamados “subversivos”: os que se manifestavam contrariamente ao governo e os que haviam pegado em armas contra o regime. A lei permitiu que exilados voltassem ao país e quem estivesse na clandestinidade ou figurasse como réu em tribunais militares pudesse viver livremente.
Mas o dispositivo legal não seria usado apenas para anistiar quem lutou contra a ditadura. Propositadamente obscura, a redação que a legislação trazia permitia que a anistia fosse estendida aos “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, ou “praticados por motivação política”, e ainda aos “crimes conexos”. Essa extensão legal, que de forma generalista tentava avançar sobre os que poderiam receber a anistia, acabava por abrigar os agentes da repressão, que torturaram, mataram e ocultaram cadáveres.
Mesmo assim, a promessa de Figueiredo de redemocratizar o país, trazendo de volta à vida pública os presos e exilados políticos, se cumpriu. Os anos de ditadura militar chegaram ao fim definitivamente alguns anos depois, uma nova constituição foi promulgada em 1988 e eleições civis, diretas e democráticas, voltaram a acontecer. A “autoanistia” que veio a reboque quis atender ao corporativismo que os militares brasileiros sempre apresentaram, e seu gosto pelo poder igualmente contumaz.
Negar ao país a possibilidade de punir os ditadores e torturadores, e de colocar a limpo sua própria história, também permite que o militarismo golpista e ditador permaneça na caserna.
Anistia de ontem e de hoje
Na última terça-feira (18), o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi denunciado ao STF pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, sob acusação de liderar uma tentativa de golpe de Estado. Bolsonaro e mais 33 pessoas foram acusados pela PGR de praticar os crimes de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa.
A denúncia da PGR e as investigações até aqui demonstram que os atos de 8 de janeiro foram a parte final de uma trama golpista com objetivo de derrubar um governo eleito democraticamente e subverter a ordem vigente.
O STF condenou 371 pessoas das mais de duas mil investigadas pelos atos. A maioria dos condenados (225) teve suas ações classificadas como graves com penas que variam de três anos a 17 anos de prisão. Segundo o Supremo, entre os condenados ao regime fechado (223 no total), 71 já iniciaram o cumprimento das penas e 30 aguardam o esgotamento das possibilidades de recurso (trânsito em julgado) nas suas ações penais para o início da execução penal.
Gabriela Biló - 18.fev.25/Folhapress
Como estratégia de defesa, Bolsonaro e apoiadores articulam junto ao Congresso para que seja aprovada uma lei que anistie os envolvidos no 8 de janeiro. No mesmo dia da denúncia da PGR, o ex-presidente afirmou que não haveria “dificuldade para colocar em pauta” a anistia. Embora Bolsonaro afirme o contrário, uma anistia aos envolvidos no 8 de janeiro iria beneficiar os agora denunciados ao STF.
Este espaço no Folha1 ouviu Pedro Estevam Serrano, advogado e doutor em direito do Estado, e professor de direito constitucional, sobre a admissibilidade de uma lei de anistia neste momento:
Pedro Serrano
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Divulgação/PUC
— Caso aprovada, essa lei de anistia poderia ter fundamento legal, mas o problema não seria exatamente esse. Haveria um desvio de poder, dependendo como for aprovada a anistia. Desvio de poder é uma forma especial de inconstitucionalidade, então daria para questionar a constitucionalidade da lei, caso aprovada.
Serrano confirma que a lei beneficiaria os agora denunciados, disse que sua aprovação “influenciaria no caso dos denunciados pela PGR, eles estariam anistiados, pois ela [a lei de anistia] pegaria todo mundo que cometeu ou participou do crime, então não teria sentido prosseguir o processo contra eles”.
O esquecimento e a necessidade de julgamento
Anistia é esquecimento. Quando se propõe que um processo de anistia aconteça no país, recorre-se ao interesse público e político de apagamento de fatos e crimes ocorridos durante um período histórico. A centralidade da ideia de anistia é absolver os culpados pelos crimes cometidos, conceder perdão e reconhecer que o que foi feito não é mais passível de punição.
E para que aconteça, a anistia deve obrigatoriamente ter a intenção de construir uma nova marcha para o futuro, com o desarme dos espíritos antes revoltosos, buscando uma convivência pacífica que possibilite reconstruir uma civilidade democrática.
A anistia aprovada por Figueiredo em 1979, mesmo tendo colocado sob o mesmo guarda-chuva quem lutou contra a ditadura e quem a praticou, cumpriu o papel de repactuar a convivência democrática. Havia a promessa real de construção coletiva de um novo futuro. No atual momento, algumas perguntas ficam. Existe o mesmo ânimo agora, na atual proposta de anistia? Estaria, quem praticou os atos no 8 de janeiro, disposto a conviver pacificamente com uma pluralidade de ideias e ideologias? Os denunciados por golpe de Estado ficariam sujeitos a uma pactuação onde a democracia não esteja novamente ameaçada?
A questão não reside no conceito de anistia. Há pactuações possíveis de serem feitas que visem construir uma convivência democrática possível. Como sistema imperfeito e de poucas defesas, a democracia deve permitir acordos entre os diferentes e até anistiar crimes contra ela mesma. A questão está no mérito.