Parte da política no Brasil e no mundo é feita de memes — talvez parte significativa da comunicação política, hoje, esteja baseada em vídeos, fotos ou animações virais com um toque de humor, em geral ácido.
O termo meme parece novo, mas surgiu em 1976, no livro O Gene Egoísta, do biólogo Richard Dawkins. É um trocadilho: mimesis — que significa imitação, em grego — e gene. Para ter algum tipo de eficácia, o meme precisa se multiplicar, precisa ser capaz de contaminar a tela de quem está recebendo a ponto de fazer a pessoa compartilhar, e assim contaminar outra pessoa. É a centralidade da vida de um vírus: precisa viralizar.
Mas, uma vez viral, o meme é capaz de fazer estragos — ou de produzir os efeitos que o criador quis. Existem pessoas especializadas nesse assunto e com estratégias muito bem desenhadas para que um meme ganhe vida e contamine o maior número de pessoas possível. Os memes não são ingênuos como às vezes parecem, e por trás deles está um bocado de inteligência artificial e humana.
O meme não precisa da realidade para viver. Basta que a ideia seja vendida de forma com que as pessoas acreditem ou, pelo menos, não questionem. Se fez rir, é ainda melhor.
Há exemplos célebres de memes políticos bem-sucedidos. Um dos mais famosos é uma montagem com o rosto do presidente russo Vladimir Putin maquiado, tendo ao fundo uma bandeira com as cores do arco-íris. Apelidado de “Putin drag queen”, o meme tornou-se símbolo da luta contra a homofobia no país. Por aqui, o perfil “Dilma Bolada”, no Twitter e Facebook, conseguiu suavizar a imagem da ex-presidente Dilma Rousseff. Não foi suficiente para impedir o impeachment — também não se pode atribuir tanto poder aos memes —, mas ajudou a reposicionar sua imagem entre parte do eleitorado.
Ilustração de Vladimir Putin popularizada durante as manifestações em favor dos direitos LGBT na Rússia em 2013
O ex-presidente Bolsonaro era um meme ambulante. Com frases de efeito, ideias desconexas e grosserias constantes, produzia material farto tanto para a oposição quanto para os aliados, provando que um meme também pode ser eficaz ao se comunicar com um público específico, imune a qualquer argumento contrário. Em episódio recente, Bolsonaro decidiu dar um recado em inglês de cima de um trio elétrico. Se não bastasse a pronúncia sofrível, as palavras não faziam sentido. O vídeo viralizou e se transformou em uma infinidade de memes. A maioria jocosa, mas, para alguns, o efeito foi o de ver um político corajoso e autêntico.
Na disputa memética mais recente, o governo Lula III vem sentindo um gostinho de vitória que há muito não experimentava. O personagem criado com IA para o presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta — “Hugo Nem se Importa” — conseguiu comunicar, com eficácia simbólica e narrativa, que o Congresso tem agido em defesa das parcelas mais ricas da sociedade. A disputa gira em torno da taxação do IOF, mas a batalha principal está em outro campo: o do imaginário público.
Porque, em tempos de redes sociais, a política deixou de ser apenas projeto de país — tornou-se uma disputa de símbolos, frames, viralizações. Quem comanda a linguagem do meme, comanda parte do debate público. E, no final, o que pode parecer apenas uma piada, pode ser, na verdade, a vitória de uma ideia.
Governar, no Brasil, é também meme. Rir é um ato político. E compartilhar, às vezes, é escolher um lado.
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O debate sobre o ativismo judicial no Brasil se intensificou na última década, especialmente diante da atuação do Supremo Tribunal Federal e da herança da Lava-Jato. A controvérsia tem fundamento: é possível perceber excessos em ações do poder que julga, e operações dos órgãos de repressão sob seu guarda-chuva — como exemplo, a citada Lava-Jato — resultaram em pessoalidades e interesses políticos evidentes. Porém, assim como é preciso entender o “homem e suas circunstâncias” — frase do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955) —, torna-se necessário pensar o mesmo das instituições e dos poderes.
Desde que John Locke e Barão de Montesquieu — figuras-chave do Iluminismo e da teoria política — pensaram o Estado como uma estrutura onde há necessária separação entre os poderes, defende-se a ideia de equilíbrio. É preciso que haja limitações para exercer o poder, e também que diferentes estruturas concentrem atividades com princípios distintos para que o poder possa ser efetivamente exercido. Um jogo que deve ser equilibrado, pelo menos em democracias.
No sistema tripartite, o judiciário, o executivo e o legislativo formam um equilíbrio de vértices móveis, onde o protagonismo de um poder pode se inclinar conforme o peso das circunstâncias; vértices que não podem ser estáticos. A depender das circunstâncias, esse “triângulo” deve inclinar-se para que a base esteja sustentada por poderes submetidos a um outro de ponto mais elevado. E essa posição deve ser invertida caso mude as circunstâncias novamente; não há supremacia de poderes numa democracia, o que precisa acontecer é alternância.
Além da tripartição dos poderes, deve existir hierarquia e equilíbrio de forças dentro de cada um. O órgão máximo de um poder não pode decidir sozinho, ele precisa, além de se submeter às leis constitucionais, entender que faz parte de uma estrutura maior, onde o poder deriva da coletividade e sempre deve ser exercido através de representações colegiadas. O Senado interfere no Supremo, assim como o Supremo pode interferir no governo executivo. Em um jogo de forças complexo, a democracia se consolida quando decisões podem ser alvo de contestação.
Quando se contestam julgamentos e as penas definidas a partir deles, não se pode contestar a legitimidade do poder judiciário em fazê-lo, e sim os indivíduos que estão investidos em togas e funções públicas, sob pena de subverter os mesmos princípios que se pretende mostrar maculados. Um juiz exerce seu poder primeiro — de julgar — revestido de prerrogativas conferidas por um acordo social onde liberdades e direitos são limitadas em nome do interesse coletivo — onde o próprio juiz está inserido. Portanto, seus julgamentos não podem ser isentos de contestação. Quanto mais acima da pirâmide, mais necessário se faz o equilíbrio para manter-se nessa posição.
Mas existe uma diferença fundamental entre equilíbrio e revanchismo. Na relação entre Senado e Supremo, por exemplo, trata-se de movimentos dos vértices de poder, onde os excessos são punidos, quando estes são praticados por indivíduos. Caso um juiz supremo esteja sob o escrutínio de senadores, não se pode confundi-lo com o órgão colegiado que ele faz parte. Nesse caso, não está em julgamento o Supremo, e sim decisões proferidas por seus integrantes, no interior de sua complexa engrenagem institucional.
Cabe ao Supremo o julgamento de uma trama golpista que visava subverter por completo a democracia e a ordem institucional vigente. Cabe aos julgadores do topo da pirâmide determinar — após julgamento feito com observação de todas as garantias — quais serão as punições dos indivíduos envolvidos na tentativa de golpe. Para que a ameaça de golpe de Estado tenha alguma gravidade e possibilidade de dano, ela deve ter sido arquitetada por representantes de grupos com forte poderio armado, que podem ser formados fora das estruturas democráticas, ou por integrantes do alto escalão dos poderes constituídos. A estrutura do Estado não sofre ameaça caso seja atacada por organizações ou pessoas sem essas características, uma vez que o acordo social delegou ao Estado o uso da força e da coerção.
Julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da trama golpista, onde estão acusados políticos, militares e um ex-presidente da República.
A condenação dos responsáveis por atentarem contra o Estado Democrático de Direito é legítima e necessária. Mas nenhum poder pode se cristalizar sobre o trauma de um golpe frustrado. Passado o julgamento, a democracia só estará verdadeiramente protegida se os vértices do poder voltarem a se mover. Um Supremo fortalecido pelo enfrentamento do extremismo deve seguir submetido ao controle constitucional, como qualquer órgão republicano.
O Senado, ao exercer sua função fiscalizadora, deve fazê-lo em nome da legalidade — e não da vingança. E o Executivo, apesar de eleito, não pode confundir maioria com soberania. A saúde democrática não se mede pela rigidez das instituições, mas por sua capacidade de flexionar-se sem romper.
Sob ataque, a democracia precisa sim se proteger. E o peso de circunstâncias excepcionais, como as vividas nos últimos anos, pode momentaneamente inclinar a pirâmide democrática — mas ela precisa voltar a se equilibrar. O poder que se fixa, mesmo em nome da democracia, deixa de ser equilíbrio — e começa a ser dominação.
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edmundosiqueira@hotmail.com
Se há um ensinamento possível para as esquerdas vindo das últimas eleições municipais no Brasil, e da eleição de Donald Trump nos EUA, é que existe um problema de comunicação. Há um evidente distanciamento do pensamento de esquerda com uma parcela significativa da população.
São muitos os motivos, mas quando verificamos que é um fenômeno globalizado, e que está aliado a um avanço da extrema-direita, como visto em diversos países, podemos dizer que essa dificuldade de comunicação do pensamento progressista faz parte de uma dinâmica mundial, que decorre dos próprios tempos. Parece vago, mas tentarei explicar.
A democracia liberal, como a conhecemos, passa por uma crise profunda. Abandonou-se a ideia de que os intolerantes não podiam ser tolerados, justamente pela sobrevivência da democracia. Portanto, não é gratuita a defesa libertária da extrema-direita. É preciso que ideias intolerantes circulem livremente na sociedade para que se crie um clima de hostilidade entre as pessoas, e nas suas relações com as instituições. A ideia de uma liberdade de expressão absoluta não passa de cortina demagógica para esconder autoritarismos.
O problema é que para combater o avanço de extremismos dessa natureza é preciso trabalhar conceitos abstratos. Democracia é um deles. Estado de Direito, freios e contrapesos, outros. Eles são elementos de respostas complexas para problemas complexos. E também por isso são conceituações difíceis de comunicar, principalmente no instantâneo e vazio de conteúdo mundo imposto pelas redes sociais. É impossível explicar o paradoxo da tolerância, por exemplo, em um vídeo de 15 segundos no TikTok.
Essa batalha tem sido perdida nos últimos anos. As promessas quebradas pela democracia em relação à segurança, educação, cultura, moradia, transporte, empregos e igualdade de direitos vem sendo comunicadas pelo extremismo trazendo dois elementos de grande eficácia: a apresentação direta de um inimigo — um bode expiatório para os ressentidos e os que buscam culpados — e um punhado de respostas fáceis. Exemplifico: o comunismo no Brasil e os imigrantes nos EUA como inimigos; a morte de bandidos para resolver a violência e deportação em massa como uma respostas fáceis.
No caso específico do Brasil as esquerdas decidem por abandonar a comunicação com os trabalhadores — onde exerciam historicamente um caminho de luta para obtenção e manutenção de direitos trabalhistas — para assumir uma posição identitária. Assim como o extremismo de direita, optou por uma resposta fácil, mas sem o êxito de comunicação, justamente por ser exercida por uma intelectualidade que olha para o povo de cima.
Talvez a PEC seja também uma resposta fácil para problemas complexos, mas o fato é que ela se mostrou como centro de um assunto de enorme repercussão e que foi reconhecido como uma pauta das esquerdas. O campo progressista pautou o debate público, assumiu a dianteira e manteve o controle da chamada “narrativa” — como há muito não se via.
Existem bons argumentos contra e a favor da proposta de reduzir a escala de trabalho dos brasileiros, que tem uma das maiores do mundo. A ideia é acabar com a possibilidade de escalas de 6 dias de trabalho e 1 de descanso, chamada de “6x1”, e aderir a um modelo em que o trabalhador teria três dias de folga, incluindo o fim de semana.
Experiências internacionais mostram que escalas mais humanas aumentam a produtividade e possibilitam aumento significativo de qualidade de vida dos trabalhadores. Por outro lado, não há estudos robustos sobre os impactos nos pequenos negócios e não tem se discutido sobre a enorme massa de precarizados do Brasil, que inclusive não tem CLT.
A PEC tem poucas chances de ser aprovada. Mesmo que se ache um meio termo possível, uma alteração constitucional desse peso depende de muita pressão popular e muito esforço político. Porém, já é uma expressiva vitória política das esquerdas no Brasil. A reação às derrotas recentes parece ter se iniciado agora, e pode ser que um caminho para voltar a se conectar com a população tenha sido encontrado. Ainda é cedo para afirmar que ele será evolutivo, mas até aqui foi uma experiência exitosa.
O Brasil e os EUA são países semelhantes em muitos aspectos. Foram construídos através de colonizações europeias e passaram por adequações sociais parecidas. E as últimas eleições realizadas nos dois países mostraram que há uma massa de desalentados que precisam reencontrar seu lugar no mundo, perdido principalmente pelas mudanças nas relações de trabalho impostas pela globalização e pela tecnologia.
Para voltar a ficar saudável, as democracias vão precisar encontrar um jeito de garantir alternância de poder e de ideologias, com propostas de ambas que busquem o bem estar social por meio de visões de mundo diferentes, mas essencialmente defensoras da democracia. Para ser saudável, essas visões de mundo precisam saber dialogar com a realidade, pois o extremismo sempre venderá ilusões.
No meio político, é comum dizer que a eleição seguinte começa assim que a anterior termina. Nessa lógica, a campanha de 2026 terá início assim que o pleito deste ano finalizar a contagem dos votos e definir quem estará à frente das prefeituras e câmaras.
As capitais, pela densidade eleitoral e importância econômica, servem como termômetros para que as forças políticas delineiem suas estratégias para 2026. E São Paulo, a maior e mais rica capital brasileira, parece oferecer respostas para duas questões centrais do binarismo político atual: é possível um bolsonarismo sem Bolsonaro? Existe um centro político no Brasil?
O candidato Pablo Marçal (PRTB) se apresenta como um representante da direita: um empresário-coach que exalta o empreendedorismo e a meritocracia, adota um conceito alargado de liberdade, propõe ideias mirabolantes para a cidade e ataca adversários políticos de forma agressiva, muitas vezes criando factoides. Naturalmente, mantém uma postura anti-sistema.
Marçal possui proximidade com Bolsonaro e já o apoiou financeiramente. No entanto, ele enfrenta como concorrente pela prefeitura de São Paulo Ricardo Nunes (MDB), o candidato oficialmente apoiado por Bolsonaro. Os ataques de Marçal a Nunes geraram tensões no bolsonarismo, com um recente bate-boca nas redes sociais. Carlos Bolsonaro foi chamado de “retardado” por Marçal.
Mas isso não é tudo. Marçal controla uma gigantesca máquina digital, não apenas por meio de suas próprias redes, com milhões de seguidores, mas também estimulando pequenos perfis a viralizar vídeos curtos de seus posicionamentos. Essa estratégia inclui concursos: quem conseguir mais visualizações ganha, além de curtidas e status, prêmios em dinheiro oferecidos pelo próprio Marçal.
Esse combo de “nova direita”, anti-sistema, coach e influenciador tem o potencial de abafar o bolsonarismo tradicional. Marçal consegue dominar melhor as redes, comunicar-se com mais eficácia, falar de religião com mais convicção e, além disso, exibir coragem ao proferir absurdos midiáticos. Ele se configura, portanto, como uma grande ameaça ao bolsonarismo.
Ainda é muito cedo para prever o resultado eleitoral em São Paulo, mas caso alguém como Marçal avance para o segundo turno, o eleitorado fiel a Bolsonaro pode vê-lo como uma opção mais viável e com maior capacidade de atacar os “inimigos”.
E o Centro?
Enquanto Pablo Marçal surge como uma ameaça ao bolsonarismo tradicional, Tábata Amaral (PSB) se apresenta como uma figura que pode dar nova fisionomia ao centro político no Brasil. Jovem, carismática e com um histórico de defesa da educação e dos direitos sociais, Tábata tem se posicionado como uma alternativa equilibrada diante do extremismo que caracteriza tanto a direita quanto a esquerda.
Nos últimos meses, Tábata intensificou seus ataques a Pablo Marçal, criticando suas propostas que, segundo ela, carecem de seriedade e responsabilidade. Em debates públicos e entrevistas, Tábata tem ressaltado a necessidade de um projeto de cidade que seja inclusivo, sustentável e realista, contrapondo a visão messiânica e muitas vezes irrealista de Marçal.
Em vídeo viral recente, Tábata traz elementos que tentam comprovar a ligação de Marçal com a facção criminosa PCC. Com estética de séries policiais, o vídeo mostra um enredo bem elaborado, com fotos e nomes dos supostos comparsas.
Vídeo de Tábata Amaral ligando Pablo Marçal ao PCC
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A postura de Tábata é emblemática porque ela representa uma tentativa de resgatar o centro político, que tem sido ofuscado pelo radicalismo dos últimos anos. Sua crítica a Marçal não é apenas uma rejeição às suas ideias, mas um antagonismo de estilo.
Se conseguir se firmar como uma voz do centro, oferecendo uma alternativa viável tanto para aqueles que rejeitam o extremismo quanto para os que buscam um governo mais racional e equilibrado, ela pode pavimentar o caminho para a construção de um novo bloco político em 2026.
Assim como Marçal representa uma nova face da direita, Tábata pode se tornar o rosto de um centro renovado, com capacidade de dialogar com diferentes setores da sociedade e construir consensos. A batalha entre essas duas figuras em São Paulo pode ser um prenúncio das disputas políticas que veremos em âmbito nacional nos próximos anos.
O futuro político de São Paulo, portanto, pode ser decisivo não apenas para a cidade, mas para o cenário político nacional. Tábata Amaral, com seu perfil moderado e propositivo, pode dar ao centro a visibilidade e a relevância que ele perdeu nos últimos anos, enquanto Pablo Marçal, com sua retórica agressiva e postura anti-sistema, testa os limites do bolsonarismo sem Bolsonaro.
São Paulo pode mostrar ao país que a mente apavora o que ainda não é mesmo velho, e aprender depressa a chamar de realidade novos cenários políticos.
A história da humanidade é inegavelmente marcada por disputas de poder. E de espaço. Espaços vazios, especialmente os formados por vácuos de domínio — onde pessoas ou grupos, até então dominantes, entram em processos de decadência —, são ocupados por aglomerações periféricas que orbitavam o que antes estava centralizado. Essas aglomerações periféricas podem estar plenamente organizadas no momento em que os vácuos de poder se formam, mas frequentemente não estão. Quando a segunda situação ocorre, rearranjos tornam-se necessários. E esses processos demandam tempo.
A introdução dessa temática é demasiadamente extensa justamente por necessitar que algumas premissas históricas sejam apresentadas. Dentre elas, podemos falar dos declínios nas centralidades de poder que levaram à Renascença e ao Iluminismo. Mas o objetivo aqui não é fazer um recorte temporal tão dilatado.
É necessário, porém, refletir sobre o período após a Segunda Guerra como essencial para estabelecer relações de causas e efeitos com a contemporaneidade. É após esse conflito global que muitas democracias liberais conseguem se restabelecer, sobretudo na Europa ocidental e nos EUA, e se tem o início de um forte processo de universalização de direitos e da globalização de economias e culturas.
As sociedades tornam-se interdependentes, não apenas em suas relações econômicas e de abastecimento de energia, mas também culturalmente. Modos de vida e formas de ver o mundo influenciam diretamente nas decisões de consumo, e afetam as percepções e a relação das pessoas com a informação. Em mercados globais, é interessante que grandes massas de pessoas, de países diferentes, tenham os mesmos objetos de desejo, consumam os mesmos produtos de lazer e se comportem de forma semelhante. E até tenham predileções políticas mais uniformes.
Essa é uma lógica que fez bastante sentido em um mundo de realidade industrial. Nações menos desenvolvidas ofereciam trabalhadores e mercado consumidor de produtos de baixo valor agregado, deixando a tecnologia e serviços especializados com o chamado “primeiro mundo”. Dividia-se o planeta em regiões comandadas por países concentradores de poder e dinheiro. Era preciso centralidade e globalização nas medidas certas, para um equilibrado sistema retroalimentar.
Linha de montagem, criou um sentimento de lealdade à companhia e de orgulho em trabalhar para a Ford
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Wikimedia Commons
Embora se apresente como um modelo insustentável e romântico, percebido assim pelas classes dominantes desde seu nascedouro, ele era difundido como dogma; e estimulado. Para o leitor com mais de 30 anos, não deve ser difícil rememorar os livros didáticos que nomeavam o primeiro e o terceiro mundo, definindo a partir do equador o sul subdesenvolvido e o norte primeiro mundista.
Mas retirando-se as simplificações propositais, numa sociedade de consumo global, com papéis definidos e centros poderosos intocáveis, um operário de fábrica conseguia viver com dignidade, mesmo trabalhando mais de 10 horas diárias e morando em periferias com baixo investimento público.
Esse trabalhador teria condições de participar de um modelo de vida comum, teria uma casa financiada no banco, um carro popular e faria parte de um clube onde pudesse levar sua família aos finais de semana. O homem exercia o papel de provedor, a mulher cuidava do lar e as crianças poderiam apenas estudar. As grandes cidades acumulavam serviços como saúde, lazer e educação e mesmo separados por um zoneamento definido por renda, poderiam frequentar praticamente os mesmos espaços.
A chamada “classe média” — nomeada assim justamente por ser alargada e permitir direitos medianos — tende a conviver bem com brutais concentrações de renda e uma parcela crescente de pobres e miseráveis. Como dependem menos de serviços do Estado, percebem como assistencialismo as iniciativas sociais, a distribuição de renda e ações afirmativas. E tentam ao máximo se diferenciar dessa parcela empobrecida, principalmente no consumo.
As crises de identidades e os extremismos
Essas visões tradicionais, e os papéis estabelecidos por elas — como a do “homem provedor” e da classe média “diferenciada” —, começam a ser questionadas a partir das mudanças estruturais vindas da globalização e mais recentemente da transição tecnológica.
Em uma realidade industrial, de papéis definidos e fisionomia social visível, a percepção de injustiças e desigualdades concentrava-se em questões econômicas e geográficas, partindo-se de princípios de capacidade e oportunidade, e mesmo sendo uma percepção distorcida, o poder era aceito quando exercido por elites, vindas do dinheiro ou da consequência dele, como acesso à educação superior.
Acontece que as injustiças passam a ser também sentidas por quem ocupava lugares de privilégios. A “classe média” que tentava a todo custo se diferenciar dos mais pobres começou a perder espaço e diminuir consideravelmente suas perspectivas de uma realidade confortável. Boa parte dos empregos que conferiram boas condições de vida, ou deixaram de existir ou estão seriamente ameaçados. O mundo passou a necessitar com mais evidência e em mais áreas, de cérebros, de conhecimento e da capacidade de transformar estudos e tecnologia em algo consumível.
Soma-se a isso as transformações na matriz energética da maioria dos países e se tem um mundo em transição, e sem fisionomia clara. Onde estaremos daqui a cinco ou dez anos? Quais empregos permanecerão? Como iremos nos relacionar com nossos vizinhos e amigos? Como se dará a geopolítica? São perguntas que deixam sem resposta clara uma quantidade enorme de pessoas. E isso assusta.
Não é por acaso que vivemos uma era de extremismos e de nacionalismos. Incerteza e transição — e a falta de uma fisionomia social — provocam medo e tendem a realocar posições definidas, às vezes por séculos. E a tendência é que os grupos se fechem neles mesmos e se radicalizem. Alguns países conseguem fazer isso de forma ampla, e tendo identidade nacional mais definida, e quando vivenciando crises econômicas e sociais, levam a maior parte da população a ser convencida que os problemas vem de fora, dos imigrantes ou de “raças impuras”.
Grupo neonazista, pedindo a supremacia branca, nos EUA, em 2017.
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Twitter / http:/ultimosegundo.ig.com.br/mundo/2017-08-14/supremacia-branca-eua-neonazismo.html
Em países mais dispersos, com realidades mais heterogêneas, inimigos internos são criados e os ódios nutridos são direcionados ao bode expiatório doméstico, favorecendo o binarismo político e sufocando o centro democrático.
Rousseau e Comte, com o Iluminismo e o Positivismo, respectivamente, trazem a ideia de que as sociedades constroem pactos civilizatórios, com contratos sociais que devem ser respeitados em suas evoluções. A democracia, como a conhecemos, foi construída a partir da promessa que esses pactos serão honrados, e que será buscado uma condição melhor de vida para todos.
Mas esse cenário entra em crise sistêmica justamente por promessas não cumpridas. Crises econômicas sucessivas, com efeitos globais e causas semelhantes, fizeram com que a social-democracia, o liberalismo e os centros políticos perdessem significativamente suas representatividades. A globalização teve efeitos não esperados, e conflitos regionais, como no Oriente Médio, produzem crises diplomáticas, de abastecimento e migratórias com impactos em todo o globo.
Fluxos migratórios - Século XXI
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https:/pedromartins.comunidades.net/mobilidade-da-populacao
EUA, França, Inglaterra e Alemanha, como atores democráticos de papel central nessa realidade pós-guerra, comportaram-se como sociedades de evolução constante, que poderiam suprir seus concidadãos com um estado de bem-estar social cada vez mais aprimorado. Uma lógica positivista e evolucionista que não se sustenta na realidade, produtora de desigualdades locais e globais. E de conflitos armados que tentam preservar essa centralidade econômica e política.
Democracia nas cordas?
Diversos trabalhos acadêmicos e bestsellers tentam demonstrar como as democracias morrem e como as instituições podem ser corroídas “por dentro” ao ponto de não conseguirem servir aos freios e contrapesos democráticos. Porém a realidade de um tempo ainda sem fisionomia deixa as incertezas ainda mais evidentes, seja para determinar o fim da democracia liberal ou para garantir sua sobrevivência.
É certo que o sistema político e social que possibilitou o aperfeiçoamento das democracias liberais está em crise, e que tem se colocado “nas cordas” do ringue, sendo esmurrado. Sem conseguir proferir contra-ataques. Mas, experiências recentes na França e no Reino Unido, e os processos eleitorais nos EUA e na Venezuela, para citar alguns exemplos, poderão demonstrar que é possível cansar os golpeadores.
Mesmo saindo das “cordas”, a democracia não estará vencendo, e não estará certo que alguma fisionomia social esteja se formando a partir de movimentos pendulares. As transições ainda estarão em curso e as identidades em crise.
As disputas de poder contemporâneas e futuras determinarão quais espaços serão ocupados, como sempre foi a tônica das sociedades. O que se difere agora são as escalas e a velocidade. Medidas de grandeza determinantes nos próximos rounds.
Imagem gerada por IA - Edmundo Siqueira
Não seria impossível — talvez tenha existido de fato — ver um vendedor de rua em qualquer capital brasileira expondo suas camisas de time de futebol em um varal, e entre elas estivessem camisas da Palestina e de Israel. O Brasil atravessa um tempo de polarização extremada e de pensamento binário, que mesmo sobre qual lado você está em conflitos no Oriente Médio são determinantes para formar identidades.
Vivemos, por vários motivos, o que está sendo chamado de “polarização afetiva”, que é quando as discussões e ideologias deixam de ser políticas e passam a ser formadoras de identidade e de pertencimento de grupos sociais. Em outras palavras: a depender da opinião sobre um tema, alguém pode ser aceito ou expulso de uma tribo, de um grupo de pessoas que radicalizaram suas posições.
Relacionar identidade e pertencimento com posições políticas, transformam o jogo democrático em algo tribalizado, essencialmente emotivo e afetivo, portanto. Podemos culpar as redes sociais, mas determinar qual raça ou tribo alguém pertence sempre foi um instrumento poderoso para o ódio, esse significativamente mais antigo que as redes.
A grande contribuição que o mundo virtual trouxe para esse jogo antipolítico foi a gamificação. Uma armadilha que traz ao manipulado uma sensação de prazer e satisfação quando oferece recompensas imediatas por cumprir determinada tarefa ou agir de determinado jeito. Os “likes” e “cliques” se multiplicam por posições radicais, ou por conteúdos que geram discórdia.
Os algoritmos não estão interessados em posições moderadas, principalmente políticas. Mas, de novo, não podemos culpar os instrumentos. O algoritmo responde aos estímulos dados pelas pessoas, que mesmo manipuladas, refletem suas próprias posições extremadas.
Sacadas de apartamentos em São Paulo exibindo bandeiras de Israel e da Palestina.
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Folhapress - Folha de S. Paulo
Essas armadilhas modernas são eficazes e massificadas. Instrumentos virtuais que utilizam-se de sensações e instintos humanos, esses universais. Portanto, mesmo que tenhamos consciência desses fatores, não é humanamente possível nos colocarmos alheios a esses estímulos, e possivelmente nos reconhecemos caindo em algumas dessas armadilhas.
Voltemos ao caso das camisas de time misturadas às predileções na guerra do Oriente Médio: embora seja um conflito importante, de contornos milenares e envolto em questões religiosas, assumir uma posição neutra ou mediadora não é aceitável nesse jogo antipolítico. Defender a solução de dois estados — Israel e Palestina — não é uma posição que gera “engajamento”. É preciso que você defina de que lado está, mesmo em uma situação de alta complexidade.
Além de permitir que mais e mais pessoas se engajem, estimular posições binárias permite que as soluções sejam de fácil entendimento. Ora, basta eliminar Israel para que o povo palestino deixe de sofrer com o genocídio. Ou, fortaleça o domínio de Israel na região e terá a paz.
Muro com inscrições em hebraico, português e inglês, onde se lê "paz", em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo.
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Folhapress - Folha de S. Paulo
O maniqueísmo proposital estimulado pelas redes simplifica decisões complexas, a ponto de pessoas determinarem que um semelhante está do lado do bem ou do mal por suas posições políticas. Se alguém é a favor de dois estados no conflito Israel e Palestina, está do lado do mais forte, portanto configura-se como mal na visão de alguém pró-palestina. E vice-versa.
Política e conflito - Radicalizar os temas se tornou crucial para os políticos que buscam visibilidade e engajamento virtual, e é preciso que um conjunto de posições seja pré-estabelecido para que esse representante seja aceito. Temas como aborto, armas e vacinas se tornaram dogmas definidores nos últimos tempos, no Brasil. Não há meio termo, é preciso que um combo decisório seja apresentado pelo político. Ou se é contra, ou se é a favor.
Há pouco mais de 80 anos, o mundo assistia tropas alemãs marcharem pela Europa em nome de dominação ideológica, maniqueísmo, radicalismo e tribalismo. Há pouco mais de 135 anos o Brasil açoitava e comercializava pessoas por questões raciais. Fatos que, historicamente, foram "ontem".
Discursos de ódio podem ser ouvidos hoje em mesmo tom, assim como camisas e bandeiras tremulam em varais e varandas ideológicas, esperando que o próximo manipulado as comprem e as exponham como sua identidade. São armadilhas perigosas. E repetidas.
Desde que a humanidade decidiu abrir mão de parte de sua autonomia e liberdade em nome de um pacto social — uma convivência coletiva pautada em normas e com a presença de um organismo chamado “Estado”, atuando não apenas nos ordenamentos mas com poder real sobre a vida das pessoas —, a preocupação com os preceitos éticos dessas relações foi uma constante.
O axioma acima, caro leitor, não é mero recurso retórico. Sócrates já pensava sobre a ética, já formulava teorias sobre como as pessoas agiam e reagiam diante do “bem” e do “mal”. Isso 300 anos antes de Cristo (ou antes da Era Comum, termo mais apropriado em tempos de guerra no Oriente Médio). Seu pupilo, Platão, e o aluno dele, Aristóteles, continuaram a refletir sobre ética e vida social.
“Conhece-te a ti mesmo”, dizia Sócrates, fazendo alusão direta à ideia de que quando o indivíduo conhece quem ele é, e onde está no mundo, age eticamente. Platão trouxe a discussão para as cidades — as pólis. Para ele, alguém só seria realmente bom sendo efetivamente um “bom cidadão” com a “subordinação do indivíduo à comunidade”, e na necessidade de um Estado. Já Aristóteles, entendia que as virtudes do indivíduo estavam relacionadas com sua prática, e essa deveria refletir em cidadania, participação, e reforçava a inseparabilidade entre ética e política.
Sim, há um abismo temporal e comportamental dos tempos do trio de filósofos da antiguidade. Mas as mesmas questões que refletiam continuam a produzir basicamente os mesmos efeitos, hoje. Quando discutimos políticas públicas, impostos, corrupção ou escolhemos em quem votar de dois em dois anos, estamos analisando, conscientes ou não, através de lentes éticas e morais.
Não se trata de moralismo. O julgamento ético que se faz de uma pessoa pública, ou de um político, abrange diversas questões relacionadas à postura, ao cuidado com o erário, ao passado dessa pessoa, e até seu linguajar e vestimenta. E essencialmente o modo que se relaciona com os seus, com inimigos e com desconhecidos.
O discurso do político importa, não apenas nas tribunas, mas o que e como alguém investido em um cargo público fala, influencia — para o bem e para o mal, no conceito socrático ou contemporâneo. São escolhas do ser político, mas que não se pode esquecer que também são seres sociais.
Ser agressivo em um discurso público agride o ouvinte, mas ofende ainda um princípio básico do fazer político ético: a preocupação com a comunicação e com o uso da língua para construir uma sociedade melhor, e principalmente permitir que mais pessoas possam participar e se sentirem representadas.
A construção da democracia parte de uma ideia abstrata, mas se consolida quando governo e sociedade têm voz e meios de fazer com que seus problemas sejam resolvidos. Nas cidades, é preciso criar as condições para que as pessoas se articulem num nível local de forma consistente, que possam ser ouvidos e sentir-se representados. A agressividade na comunicação e na construção dos discursos públicos afasta; não inclui.
Portanto, é uma postura antidemocrática.
Por tudo isso existe um termo que faz alusão aos rituais católicos que no meio político é conhecido por “liturgia do cargo”. No Brasil, a expressão foi popularizada pelo ex-presidente José Sarney que vinculou a responsabilidade de ocupar um cargo público — no seu caso de presidente da República — perante a população. Das palavras ditas, ao comportamento pessoal, tudo tem seu peso político, sua importância na construção da democracia.
Quando o político age agressivamente, com denuncismo ou tentando criar animosidade contra seus adversários, ele afeta sua moralidade individual, e assim destrói laços vitais e necessários que são visíveis ao povo.
Por outro lado, pode atrair seguidores que se identificam no conflito bélico comunicativo promovido pelo político, principalmente em tempos de redes sociais, mas isso não se sustenta. Primeiro pelo próprio esgotamento do conflito, depois pela percepção de quem o segue que sofreria os mesmos ataques caso desagradasse o político.
O julgamento eleitoral não é apenas relacionado aos resultados que um governante entrega, e embora haja muito de passionalidade nas eleições, a razão também está presente. Quem decide participar do escrutínio público de forma antiética e antidemocrática, utilizando-se de comunicação violenta, atrai o mesmo do eleitorado.
E vale lembrar, mesmo os pensadores que olharam para ética e a relativizaram, como Maquiavel, não dispensaram a obediência aos rituais formais de quem ocupa cargo público. Sob pena de atrair aliados e eleitores que dispensem qualquer liturgia. “O primeiro método para estimar a inteligência de um governante é olhar para os homens que tem à sua volta”, ensinou Maquiavel.
A democracia é antes de tudo uma promessa. Esse modo de viver em sociedade exige que acreditemos na promessa de bem estar social e que os governantes representem da melhor forma possível o interesse de todos — não se trata de atender os desejos da maioria, mas sim definir prioridades, dirimir desigualdades e dar voz aos excluídos.
A Constituição de 1988 é repleta de promessas, como “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, definidas já em seus primeiros artigos. Em Campos, as promessas do governante — e da oposição — podem ter peso determinante.
A eleição de 2024 em Campos se desenha para ter um caráter plebiscitário. Wladimir Garotinho se mantém como um prefeito bem avaliado, e com a persistência dos interesses mútuos que resultaram na chamada “pacificação”, o cenário eleitoral tende a ser protagonizado por Wladimir. Portanto, e caso se concretize, a população deverá decidir essencialmente entre a permanência ou não do governo.
Na última pesquisa divulgada pela Folha, feita pelo Instituto GPP entre 10 e 12 de março, Wladimir teve avaliação “ótima” ou “boa” por 55,5% dos campistas, enquanto 34,8% regular. Outros 8,8% avaliaram como ruim (3,3%) ou péssima (5,5%). Nas intenções de voto o prefeito liderou com 50,4% (61,4% dos votos válidos).
Infográfico: Eliabe de Souza, o Cássio Jr.
A oposição e o primeiro turno
A força eleitoral da oposição irá depender de conjunturas: altas taxas de aprovação do Governo Federal pode levar ao impulsionamento de uma possível candidatura do PT em Campos (tudo indica que as convenções escolham o reitor do IFF, Jefferson Manhães, como candidato), o azedamento da pacificação levando algum Bacellar ao jogo, ou abrindo campo para outras possíveis candidaturas como a do deputado Thiago Rangel e o ex-prefeito Sérgio Mendes, ou algum tropeço sério do prefeito. Mas, hoje, são apenas promessas.
Para Wladimir interessa mais a vitória em primeiro turno. Caso a disputa seja em dois, tudo pode acontecer. Claro que inclusive nada, como diria Marco Maciel, ex-governador de Pernambuco. A ida de um dos candidatos de oposição para o segundo turno pode significar que a cidade ficou satisfeita com a arrumação da casa por Wladimir, mas pensa em mudar o administrador.
Apesar de ser seu primeiro mandato no executivo, Wladimir é um político forjado nos bastidores, acompanhando seus pais em Campos e no Estado. E se mostra habilidoso politicamente e administrativamente, com excelente presença nas ruas. Manteve um ritmo de campanha com a máquina funcionando azeitada. Conjunção difícil de acontecer; uma olhada em suas redes sociais e isso se confirma.
As promessas de Wladimir e da Oposição
Para que o melhor dos cenários aconteça para Wladimir, a vitória no primeiro turno, o prefeito precisará manejar expectativas e usar o tempo a seu favor. Obras e ações de zeladoria — como o asfaltamento da área central e a pintura no cais da Lapa — devem estar prontas e conservadas em ano eleitoral, e as obras estruturantes — como transporte público, estradas e pontes — devem ser entregues parcialmente. Assim, as promessas de manter e concluir ficam factíveis ao eleitor.
Além das promessas factíveis, Wladimir tem o desafio de manter promessas de continuidade de governo. A revitalização do Centro Histórico, o restauro do Solar dos Airizes e do Colégio, o Novo Mercado, a alavancagem do turismo e do comércio, a continuidade da administração dos hospitais e a reformulação no ensino, como exemplos, podem servir para um acordo da população para que a vitória seja concedida no primeiro turno, decidindo o plebiscito favoravelmente ao governo.
Para a oposição, as promessas e expectativas devem superar as do governo. Em um governo bem avaliado, as promessas oposicionistas devem ser, ou parecer, melhores para o eleitor. Mostrar erros do governo sem apresentar promessas melhores, pode levar a desconfiança nesse cenário.
A democracia é feita de promessas. E cabe ao eleitor escolher em quais acreditar. Porém, é um sistema social e político que exige participação e cidadania — votar é apenas uma das formas delas acontecerem. E que fique claro: promessas, na democracia, devem ser cumpridas.
David Drew Zingg era um repórter fotográfico nascido em New Jersey. Trabalhava para as revistas Life e Vogue. Veio para o Brasil cobrir a regata oceânica Buenos Aires-Rio, no final dos anos 1950. Naquela ocasião, teve a oportunidade de assistir um dos primeiros shows da Bossa Nova, na boate Bon Gourmet, em Copacabana. Se encantou profundamente com a magia cadenciada de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e João Gilberto, a ponto de vir morar no Rio e depois em São Paulo. Zingg foi um dos principais responsáveis pelo Concerto de Bossa Nova no Carnegie Hall, de Nova York, em 1962.
“David, o Brasil não é para principiantes”. Esse foi o alerta dado por Tom Jobim, em voz ritmada, ao repórter da Vogue quando este lhe confidenciou suas pretensões de mudança de continente.
O maestro tentava mostrar que o Brasil não era apenas aquilo que ele viu na Bon Gourmet, e sim um país repleto de contradições — ao mesmo tempo que um regime de exceção se desenvolvia a passos largos para acabar com qualquer ideal democrático que se construía, nascia o de mais genial em música, arte, literatura, cinema, jornalismo e teatro que pôde se produzir por aqui.
Frank Sinatra e Antônio Carlos Jobim
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Courtesy of Frank Sinatra Enterprises
As contradições do Brasil não são para principiantes, de fato. Depois do regime ditatorial de 64, Fernando Henrique e Lula usaram a social-democracia para formar uma coalizão de esquerda e centro-direita, essencialmente. Com esse acordo, FH estabilizou o país e Lula incluiu alguns milhões de brasileiros no jogo democrático e econômico. A reeleição de Dilma Rousseff e os movimentos de rua de 2013 — as chamadas Jornadas de Junho, uma Primavera Árabe à brasileira — fertilizaram a extrema-direita, e com um empurrãozinho de conjunturas internacionais, Bolsonaro ascendeu de um polemista do baixo clero à presidência da República.
Além de contraditório, o país retrocede. O ódio freudiano nutrido na classe média contra as classes populares, externado em atos falhos na comparação de aeroportos com rodoviárias (Lilian Aragão, mulher de Renato Aragão, o Didi, comparou os aeroportos com rodoviárias: ‘parece rodoviária, né, gente?’) e críticas da ida de empregadas domésticas à Disney (Paulo Guedes, ex-ministro de Bolsonaro, disse que dólar alto era bom: 'empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada!'), aliado ao crescimento de igrejas evangélicas com base na Teologia da prosperidade, deram a popularidade que Bolsonaro precisava e a fidelidade quase bovina de alguns seguidores.
Reprodução/Mídia Ninja
A insatisfação com os rumos econômicos do segundo governo Dilma e sua incapacidade de articulação com o Congresso, para além do ódio de classes cultivado e do cenário de saturação com o populismo petista, possibilitaram que a Nova República atravessasse outro processo de impeachment. Inevitavelmente, novas e severas rachaduras apareceram na democracia brasileira.
Semana de 22, Bossa de 60, Ditadura de 64 e Lula de 23
Os últimos 100 anos do Brasil foram de transições. A Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, tentou trabalhar uma nova imagem do país, que buscava entender ou retratar a transição de uma realidade eminentemente rural para grandes centros urbanos cheios de fábricas e problemas. A partir de uma estética inovadora inspirada nas vanguardas europeias, a Semana marcou a cultura do país.
Nos anos 1950-60 vieram as colheitas do que foi plantado em 22. O Brasil começava a se descobrir enquanto nação, e criava identidades próprias no futebol, na música, nas praias do Rio, no poder econômico de Sampa, nas riquezas amazônicas e na descoberta do cerrado com a construção de uma capital moderna e única, concebida por Oscar Niemeyer e disposta em forma de avião, com sua fuselagem no Eixo Monumental, com suas avenidas amplas, parques e a Praça dos Três Poderes.
Uma transição forçada e violenta afundou o país em mais de 20 anos de ditadura. Foi preciso reconstruir todas as bases de 22, colocadas em artigos na Constituição de 1988. A Nova República que se formou daí é tão problemática quanto transformadora — e outra transição. O SUS foi criado, um complexo sistema de educação foi iniciado, um continental território se integrou em alguma medida, o agronegócio se transformou em uma indústria de ponta e o 7º lugar das maiores economias do mundo foi alcançado.
O que não se conseguiu resolver e se mantém como fonte de muitos dos problemas estruturais do país é a desigualdade. A vida urbana se constituiu em miséria, violência, falta de estrutura, sistema educacional e prisional falidos e saúde precária. Se não bastasse, o mundo viveu a pior pandemia de nossa era e um regime de desinformação e ódio culminou em mais uma tentativa de golpe de Estado no último dia 8 de janeiro.
Lula III - mais do mesmo ou outra transição?
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Agência Brasil
Para a nova transição que não apenas o Brasil mas o mundo atravessa, a alternativa que restou ao país escolher entre a manutenção da extrema-direita ou a volta ao poder de um líder popular e populista que tentaria promover outra conciliação de classes — e outra transição, mas essa essencialmente democrática. Embora o Lula III até agora tenha apresentado ‘mais do mesmo’, reedições de programas como Brasil Sorridente, Farmácia Popular, merenda escolar e o Bolsa Família conseguem promover impactos gigantescos e transversais no país. E buscam atenuar a desigualdade como mal originário.
O país de Tom Jobim rejeita principiantes por sua própria complexidade, mas começa a perceber que a fórmula de 1994-2006 não funciona mais. Incentivar carros populares movidos a combustão, explorar petróleo na Amazônia e apoiar ditaduras da América Latina não ajudam, em nada, um país que precisa — urgentemente — de uma nova transição tecnológica e informacional.
Para isso, será preciso se valer da boa estrutura tecnológico-científica que o Brasil possui (excelentes universidades e a Fiocruz, por exemplo), transformar espaços como a Amazônia e Pantanal em centros da economia do conhecimento. Além disso, promover infraestrutura fora do Sudeste e do Sul em hospitais qualificados, UTIs, estradas, portos e ferrovias modernas, desistindo de um subdesenvolvimento romântico imposto ao Nordeste.
Para que na Bossa Nova atual do mundo — o 5G e as Inteligências Artificiais — não sejamos apenas principiantes.
Algum estrangeiro, não conhecendo previamente nosso sistema político, que tivesse desembarcado no Brasil há duas semanas poderia facilmente inferir: o país vive um regime parlamentarista. Explico.
O resultado apertado das eleições de 2022 foram determinantes para estabelecer uma relação tensa entre executivo e legislativo, este último eleito com maioria conservadora. Precisando de pacificação na Câmara, o presidente Lula se viu obrigado a apoiar a reeleição de Arthur Lira para presidente da Casa. Lira, por sua vez, quis manter seu status de primeiro-ministro — cargo que foi "atribuído" a ele no governo anterior quando passou a controlar boa parte do orçamento federal.
Mas o sistema político do Brasil não possui primeiro-ministro. Qualquer brasileiro — ou mesmo aquele estrangeiro que desembarcou há duas semanas — que resolva buscar a Constituição Federal de 1988 e fazer a leitura dos artigos 48 e 62, teria certeza: trata-se de um regime presidencialista. Mas a confusão inicial não é exatamente uma novidade no Brasil.
As democracias liberais modernas entendem — por conceitos que vieram antes delas — que o poder deve ser limitado e compartilhado. Foi justamente o combate ao absolutismo que provocou os principais movimentos revolucionários e de emancipação no mundo — como a Revolução Francesa e a independência dos EUA.
Esses movimentos (e antes deles a obra do filósofo francês Montesquieu) prepararam os marcos do liberalismo e do ordenamento constitucional do Estado Liberal. A Constituição Brasileira foi construída com as mesmas bases, portanto separa obrigatoriamente os poderes em três, atribui funções específicas para cada um deles, e determina um legislativo bicameral.
Mas há no Brasil o que convencionou-se chamar de ‘presidencialismo de coalizão’, termo cunhado pelo sociólogo Sérgio Abranches que é um imbróglio político típico do Brasil, onde exige do presidente da ocasião negociar cargos, compartilhar poder e principalmente distribuir uma enormidade de dinheiro público para os parlamentares, via emendas.
Lira e as emendas de relator
Compartilhar poder e distribuir emendas não é, em essência, um problema. Democracias exigem que haja oposição ativa, e que o governo seja o mais plural possível, onde várias frentes atuem em conjunto. Mas para ser republicano como se deve, não se pode abrir mão da transparência.
Em 2020, com a criação do Orçamento Impositivo, as chamadas ‘emendas do relator’ eliminaram toda forma de transparência na alocação dos recursos. Naquele ano foi dado ao parlamentar relator da Lei Orçamentária Anual o direito de distribuir as emendas priorizadas pelo Executivo.
Esse instrumento foi batizado de “orçamento secreto” pois, diferentemente de outras emendas parlamentares, não havia qualquer critério definido para a distribuição ou destino do dinheiro, o que dificultava a fiscalização sobre a execução da verba. E eliminava a transparência.
O deputado Arthur Lira passou a comandar o orçamento da União que passava pela Câmara. Na prática, Lira atuava como primeiro-ministro em um regime parlamentarista, onde o chefe de Estado e de Governo não ficam representados pela mesma pessoa.
Mas, em dezembro de 2022, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram inconstitucional a distribuição de recursos das emendas de relator. A maioria dos ministros do STF considerou que não havia transparência nem igualdade nos repasses. Com a decisão, passou a ser obrigatório a identificação do deputado ou do senador, e os repasses deveriam obedecer parâmetros de acordo com o tamanho das bancadas partidárias.
Marco temporal, MP dos Ministérios e o ‘pato manco’
Nas últimas semanas de maio todos esses elementos foram colocados à prova. Dois temas prioritários do governo Lula foram usados como demonstração de força da Câmara, com movimentações políticas que estremeceram os laços republicanos e a separação de poderes.
O primeiro foi a tramitação do projeto de lei que propõe que a demarcação de terras indígenas se restrinja àquelas ocupadas à época da promulgação da Constituição Federal, e que impossibilitava a ampliação de áreas já demarcadas. O texto foi aprovado pela Câmara no último dia 30/05.
O segundo tema foi a chamada ‘MP dos Ministérios’ (MP 1.154). Seguindo o artigo 48 da CF, Arthur Lira ameaçou a tombar a MP e fazer com que o governo Lula perdesse pastas essenciais. Ao todo 17 ministros perderiam seus cargos caso a MP fosse rejeitada pelos deputados. Após intensas negociações, com a participação direta do presidente Lula, e a liberação de R$ 1,7 bilhão em emendas parlamentares, a MP foi aprovada na Câmara, com votos favoráveis de 337 deputados e 125 contrários.
Lira tentou impor a Lula a imagem de ‘pato manco’ (a expressão lame duck é importada da política americana para se referir ao presidente em final de mandato que ainda está no cargo, mas com seu poder e prestígio esvaziados). Com apenas 6 meses de governo, onde ainda tudo por acontecer — inclusive nada —, o presidente da Câmara percebeu que Lula conta com bastante capacidade de mobilização e negociação, e se recusa a entregar o controle total do orçamento federal como fez o governo anterior.
Lula tem hoje uma situação muito mais confortável no Senado, que permite que haja contenção de danos nas derrotas. A questão do marco temporal, por exemplo, esbarra no aval do Senado para passar a valer, onde o governo pretende segurá-la.
Além do Senado, o STF é visto como último recurso em algumas matérias que o governo entende como prioritárias. Caso o Senado siga a Câmara e o marco temporal entre em vigor, há a possibilidade de ser considerado inconstitucional pela Corte. E o governo conta com isso para outros temas espinhosos no futuro.
A República sem conceitos
A ditadura militar (1964-1985) implodiu todas as bases democráticas que o país vinha construindo à duras penas. O atraso institucional e social imposto pelo regime cobrou seu preço, e os desajustes encarados hoje já poderiam ter sido resolvidos há bastante tempo.
O período chamado de Nova República ou Sexta República, que vivemos na contemporaneidade, construiu uma Constituição de forte amparo social com diretrizes que buscam tratar todo brasileiro de forma igualitária. Aspectos sociais, trabalhistas e político-institucionais foram modernizados e uma série de "Direitos e Garantias Fundamentais" foram instituídos, saudados como um dos mais modernos e democráticos do mundo.
Porém, uma série de desvios e interpretações foram corroendo as relações políticas e o equilíbrio entre os poderes. Há um problema conceitual na República Brasileira, fruto desses desequilíbrios.
Quando o governo usa o STF como esteio das decisões do Congresso, ele passa a contar com três câmaras legislativas. O sistema se corrompe, passando a um inexistente sistema 'tricameral'. Quando o Congresso controla boa parte do orçamento federal, ele passa a ocupar um papel que foi determinado para que outro poder o exercesse. Determinado pelo voto e pela Constituição.
Se o Brasil insistir na corrupção de conceitos, estará fadado a permanecer com suas mazelas, e transformar o jogo democrático em algo incompreensível para estrangeiros e brasileiros. Mesmo sendo essa incompreensão proposital para impedir a participação e cidadania, ela tratará de corroer as instituições até que elas se tornem inoperantes — ou mancas. E o resultado de instituições e poderes mancos é o absolutismo.