Edmundo Siqueira
15/02/2023 22:40 - Atualizado em 15/02/2023 22:42
Nem sempre foi assim. O Banco Central, órgão que cuida da estabilidade de preços e da eficiência do sistema financeiro, passou a ser independente há pouco menos de um ano. Durante o governo Bolsonaro, por força de lei, o BC ganhou status de “autarquia com natureza especial”, sem vinculação ao Ministério da Economia. Na prática, o presidente eleito só pode mexer na chefia do banco com anuência do Senado Federal e motivação específica — ideologia e posição política não estão nesse rol.
Porém, mesmo ciente dessa limitação, o atual presidente da República resolveu pedir a cabeça de Campos Neto, presidente do BC. "É uma vergonha esse aumento de juros e a explicação que eles deram para a sociedade brasileira", disse Lula na segunda-feira (6/2), durante um evento no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O Comitê de Política Monetária (Copom), integrante do BC, resolveu manter a taxa básica de juros, a Selic, em 13,75% ao ano.
Para qualquer governante, taxa de juros alta não é bem vinda. A capacidade de investimento cai, o dinheiro circula menos e fica mais difícil retomar os empregos como se gostaria. "Não é possível que a gente queira que este país volte a crescer com taxa de 13,75%. Nós não temos inflação de demanda. É só isso. É isso que eu acho que esse cidadão [Campos Neto]”, continuou Lula, em entrevista posterior.
Técnica ou Política?
Muitos países adotam a independência de seus Bancos Centrais. Outros não; preferem que o governo controle a economia por completo. Nos dois casos, existem sucessos e derrocadas financeiras. A forma que o mercado opera, e as “leis” próprias que obedece, seguem uma lógica baseada em números e expectativas.
As questões ideológicas e de visões de mundo, acabam por se submeter a preceitos técnicos quando uma crise financeira ganha contornos catastróficos, por exemplo. Bancos de linha ultraliberal recorrem ao Estado quando quebram, e estatais estratégicas com o capital aberto, em Bolsa de Valores, são aceitas em governos de esquerda.
Para além da discussão econômica, sociedade e governos direcionam suas forças e estratégias de acordo com suas ideologias e visões de mundo. Historicamente é assim. Quando a sociedade caminha no entendimento que é preciso mais Estado, mais controle e menos liberdade para o sistema financeiro, as instituições públicas precisam perceber que há deficiências graves em cumprir o básico. Onde garantias mínimas de dignidade — saúde e educação públicas de qualidade, segurança e transporte — estão sendo suprimidas ou mesmo impedidas de chegar à maioria.
Por outro lado, menos liberdade para a iniciativa privada, mais controle e intervenção estatal acabam por afetar a produção e provocar fuga de investimentos. O mercado, como ente abstrato, passa a não confiar no Estado e entender que as decisões de governantes em relação aos gastos públicos serão tomadas sem o cuidado com a estabilidade do país. Irão gastar mais do que se arrecada.
Liberais, socialistas, sociais-democratas, sociais-liberais, conservadores, keynesianos, e mais tantas outras formas ideológicas e de entender como o mundo funciona, devem dialogar para que algum tipo de equilíbrio se estabeleça nesse jogo — para além do pensamento binário “esquerda ou direita”.
O que Lula parece ainda não ter entendido é que ele foi eleito pela formação de uma frente ampla, que entendeu que a defesa democrática era essencial. E ainda que governa em um país que há pouco mais de um mês sofreu uma tentativa grave de golpe de Estado.
Partir para o enfrentamento público com o presidente do BC só trará mais desgaste e de quebra fará com que essas formas ideológicas de ver o mundo colidam e se seus integrantes se afastem. O papel principal de Lula, nesse terceiro mandato, é garantir que tenhamos um país em que possamos discutir se o Banco Central deve ou não ser independente sem violência, sem radicalismo e principalmente, sem considerarmos quem pensa diferente como um inimigo.
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O programa Folha no Ar (diário, às 7h, em FM 98,3 e pelas redes sociais), do Grupo Folha da Manhã e o blog Opiniões, de Aluysio Abreu Barbosa, hospedado no portal Folha1, possuem um grupo de WhatsApp que fomenta discussões importantes sobre os mais variados temas. Por lá, o respeito às opiniões divergentes e a percepção que é necessário o diálogo entre as várias correntes ideológicas, são cotidianos.
No tema “autonomia do Banco Central”, o grupo presenciou vários diálogos importantes, mas reproduzo aqui duas mensagens recentes, trocadas por dois integrantes, que demonstram divergências de opiniões, mas o respeito mútuo e por fim, objetivos semelhantes.
Vejam:
“Prof. Guiomar, o ponto é importante e a proposição teorias são passos iniciais para montarmos arcabouços que sejam implementados na realidade.
Mas acredito que a Prof. concordará que há diversos métodos científicos que buscam extrair a validade para uma determinada teoria. Os métodos das ciências humanas, embora possam ser transversais, não necessariamente serão idênticos aos das ciências exatas, onde a validação matemática, a demonstração empírica através de experimentos etc possuem preponderância para determinar a validade de uma sustentação teórica.
Assim é o campo da economia. Os modelos de definição das variáveis econômicas baseiam-se em diversos modelos matemáticos que estão sendo constantemente revisitados. Recentemente, a proposição de uma nova variável na definição das taxas de curto prazo (que poderíamos chamar de "taxa financeira de equilíbrio") iniciou uma grande discussão.
Não há caixa preta ou verdades absolutas. Mas não significa que toda teoria possua a mesma validade.
Os atuais críticos da taxa Selic precisam demonstrar seus pontos. Praticamente todo arcabouço utilizado pelo Bacen é plenamente conhecido no debate acadêmico e no mundo prático, através de relatórios periódicos e trabalhos de profissionais da autoridade monetária”.
Por Igor Franco, especialista em finanças e professor.
“Olá, meu caro Igor Franco, boa noite! Uma das grandes contribuições, que, enquanto professores, pesquisadores, artistas, jornalistas, advogados, etc., de qualquer área do Conhecimento podemos deixar como herança para os nossos interlocutores, é, sim, que não existe uma Verdade acabada/definitiva. Sobre isso é que me expressei. A existência da Filosofia, da Epistemologia e da Hermenêutica, por exemplo, são a prova viva e instigante desse fato.
Assim como uma Teoria advém de um real concreto pensado, se, esta, não voltar constantemente à realidade, para se atualizar ou ser superada, será inócua na intervenção, como poderá transformar-se em dogma (daí não estaremos falando mais de Ciência). Por isso, penso que a Teoria não significa apenas um passo inicial, é uma relação dialética entre início e o fim, com suas sínteses sempre temporárias. O arcabouço seria este movimento dialético, dada a dinâmica da realidade. Hoje, então, nem as ditas ‘Ciências Exatas’ escapam desse princípio, é só observarmos as revoluções que acontecem com a Física e os registros e desafios Matemáticos dos fenômenos subatômicos, da Biologia molecular e da Química fina, também molecular (aliás, tais revoluções na produção do Conhecimento, não são de agora, remontam às primeiras décadas do século passado). Afirmo isso, porque penso, é nosso dever, abrir o leque de possibilidades de compreensão da realidade para com nossos interlocutores (novamente!), seja esta qual for – do mundo subatômico e sua diversidade e interconexões ao flagelo da desigualdade material, das guerras que alimentam o enriquecimento com as mortes e da fome! Atualmente, pressuponho, não podemos resolver nenhum problema complexo sem as interconexões com as diversas áreas do Conhecimento.
E, não podemos transformar a complexidade em algo inacessível à maioria dos humanos, seja de que condição for. É fato, que as Relações de Poder e a Economia hegemônica contemporânea dada não resolveram problemas básicos da humanidade, não cumpriram as promessas feitas desde do século XVIII; nem o socialismo realmente existente (histórico – século XX) também não o conseguiu! Qual a relevância da Ciência da Economia (em suas diversas dimensões, interconexões, interpretações e pressupostos) numa sociedade tão desigual como a nossa? Mesmo não sendo uma economista, faço a mim esta pergunta. E, de antemão, já sei que não existe apenas uma resposta. Muito obrigada, Igor e William, pelo diálogo em constante aprendizagem. Sigamos em frente!”.
Por Guiomar Valdez, historiadora professora aposentada do IFF Campos.