Arthur Soffiati - Ecorregião de São Tomé: povos nativos
* Arthur Soffiati 31/05/2025 09:09 - Atualizado em 31/05/2025 09:22
Arthur Soffiati
Arthur Soffiati / Divulgação


Do ponto de vista humano, coincidência ou não, antes mesmo que europeus colonizassem o território da Ecorregião de São Tomé, que se estende do rio Itapemirim ao rio Macaé e pelo interior até o sul da Zona da Mata Mineira, os povos pioneiros (indígenas) que o habitavam dotaram-lhe de forte unidade cultural. Esclarece Angyone Costa que o domínio dos goitacás consistia numa estreita faixa de terra apertada pelos Papanases e Tamoios, distendida do Espírito Santo ao rio Paraíba do Sul, e que essa nação, no entendimento de vários estudiosos, formava uma espécie de ilha no meio de povos tupis, não só pelo modo de vida peculiar que desenvolveram por imposição do ambiente como também pela língua que falavam. Obrigado a empreender um estudo de antropologia histórica, uma vez que esse povo já estava extinto ou muito descaracterizado culturalmente na primeira metade do século XVIII, Angyone Costa aceitou a divisão dos goitacás nos três grandes grupos reconhecidos pelos cronistas dos séculos XVI, XVII e XVIII, quais sejam, goitacá-guaçu, goitacá-mopi e goitacá-jacoritó, além de considerar os coroados, os puris e os coropós como seus descendentes ou aparentados (Introdução à arqueologia brasileira - etnografia e história, 3a ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959). Também Curt Nimuendaju traçou um famoso mapa em que a região é ocupada por goitacás, guarus, coroados e puris, limitados ao norte pelos temiminós e ao sul pelos tupinambás (Mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju. Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1987).
Da língua ou línguas faladas por esses povos, nada ou pouco restou, nem sequer na toponímia. Alguns vocábulos foram registrados por Wilhem Ludwig von Eschwege, Maximiliano de Wied-Neuwied, Karl Friedrich von Martiux, Johann Baptist von Spix e pelo engenheiro Alberto de Noronha Torrezão. A língua falada pelos puris e talvez, com variantes, pelos goitacás, coropós e coroados aparece áspera e estranha ao contexto cultural circunvizinho. Aliás, o insulamento cultural dos goitacás já era reconhecido de longa data. Jean de Léry, baseando-se num informante normando embarcado junto com ele, ao passar pelas costas da ecorregião, registrou, em 1553, que os índios Uetacá eram “...donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem...” (História de uma viagem à terra do Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1926).
No século XVII, o padre Simão de Vasconcelos notificou que os goitacás habitavam o território compreendido entre os rios Paraíba do Sul e Muriaé, mas que, em caso de necessidade, como por ocasião de guerras, pediam ajuda aos povos indígenas habitantes das regiões mais altas (Vida do venerável padre José de Anchieta. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943). Oportuno é atentar para as conexões que a nações indígenas da planície faziam com as nações que habitavam as partes mais elevadas da região. Examinando a questão em tese de doutorado, Renato da Silveira Mendes nota que, apesar das diferenças e mesmo da oposição entre regiões geográficas, havia estreita ligação dos povos que as habitavam (Paisagens culturais da Baixada Fluminense. São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1950).
José Ribamar Bessa Freire e Márcia Fernanda Malheiros reuniram, com base nas pesquisas de Aryon Rodrigues, as nações que formavam o enclave cultural mais ou menos correspondente à ecorregião de São Tomé no tronco linguístico macro-jê. Dos registros efetuados no período colonial e imperial, calcula-se que ela se dividia em 23 línguas, sendo 12 faladas na Capitania/Província do Rio de Janeiro (Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1997).
Se, a despeito da tecnologia rudimentar da maior parte dos povos indígenas americanos, estabeleciam-se intercâmbios por vezes de longo alcance entre regiões distantes e extremamente distintas, é perfeitamente cabível admitir que, na ecorregião em apreço, contatos entre planície e serra se tornassem mais facilitados em vista da existência dos tabuleiros, área de transição entre ambas, de resto povoada também por nações afiliadas aos goitacás. Em suma, não é descabido afirmar que o quadro antropossocial nativo predispõe à constituição de uma ecorregião, conceito proposto por Ignacy Sachs para designar a fusão das ordens ambiental e cultural (Ecodesenvolvimento: crescer sem destruir. São Paulo: Vértice, 1986), antes mesmo da chegada dos europeus.

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